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Poesias

1942

Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

Fernando António Nogueira Pessoa, mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.

1888-06-13 Lisboa, Portugal
1935-11-30 Lisboa
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HORA ABSURDA

HORA ABSURDA

O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas...
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso...
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...

Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte...
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto...
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões...
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia,
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora,
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora...
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto...
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido...
Não haver qualquer coisa como leitos para as naus!... Absorto
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro,
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há,
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro,
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos...
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas.
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas...
E a erva cresceu nas vias férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram!
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam
De Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas. Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada
E sente saudades de si ante aquele lugar-Outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada.

A doida partiu todos os candelabros glabros,
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas...
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros...
E que querem ao lado aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?..

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar
Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido...
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar,
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora...
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda
Há rastos de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os ocasos fundiram-se na minha alma...
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios...
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma,
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras...
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol!
Todas as princesas sentiram o seio oprimido...
Da última janela do castelo só um girassol
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais! Ó leões nascidos na jaula!...
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?...
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula...
Porque não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho...
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Porque não perdê-lo?...
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque –
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo,
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque...

Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos...
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim...
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos,
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir...
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem...
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há-de vir.
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem....

É preciso destruir o propósito de todas as pontes,
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras,
Endireitar à força a curva dos horizontes,
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce...
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito...
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece,
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!...
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!...
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal,
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema – Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos...
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma.
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...


04/07/1913 (Exílio, nº 1, Abril de 1916)
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I - Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito

CHUVA OBLÍQUA

Poemas Interseccionistas de Fernando Pessoa

I

Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvores, estrada a arder em aquele porto.
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

II

Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...

Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso.
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no facto de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...


III

A Grande Esfinge do Egipto sonha por este papel dentro...
Escrevo – e ela aparece-me através da minha mão transparente
E ao canto do papel erguem-se as pirâmides...

Escrevo – perturbo-me de ver o bico da minha pena
Ser o perfil do rei Cheops.
De repente paro...
Escureceu tudo... Caio por um abismo feito de tempo...
Estou soterrado sob as pirâmides a escrever versos à luz clara deste candeeiro
E todo o Egipto me esmaga de alto através dos traços que faço com a pena...

Ouço a Esfinge rir por dentro
O Som da minha pena a correr no papel...
Atravessa o eu não poder vê-la uma mão enorme,
Varre tudo para o canto do tecto que fica por detrás de mim,
E sobre o papel onde escrevo, entre ele e a pena que escreve
Jaz o cadáver do rei Cheops, olhando-me com olhos muito abertos,
E entre os nossos olhares que se cruzam corre o Nilo
E uma alegria de barcos embandeirados erra
Numa diagonal difusa
Entre mim e o que eu penso...

Funerais do rei Cheops em ouro velho e Mim!...


IV

Que pandeiretas o silêncio deste quarto!..
As paredes estão na Andaluzia
E há danças sensuais no brilho fixo da luz...

De repente todo o espaço pára...
Pára, escorrega, desembrulha-se...,
E num canto do tecto, muito mais longe do que ele está,
Abrem mãos brancas janelas secretas
E há ramos de violetas caindo
De haver uma noite de Primavera lá fora
Sobre o eu estar de olhos fechados...


V

Lá fora vai um redemoinho de sol os cavalos do carrossel
Árvores, pedras, montes, bailam parados dentro de mim...
Noite absoluta na feira iluminada, luar no dia de sol lá fora,
E as luzes todas da feira fazem ruído dos muros do quintal...
Ranchos de raparigas de bilha à cabeça
Que passam lá fora cheias de estar sob o sol,
Cruzam-se com grandes grupos peganhentos de gente que anda na feira,
Gente toda misturada com as luzes das barracas, com a noite e com o luar,
E os dois grupos encontram-se e penetram-se
Até formarem só um que é os dois...
A feira e as luzes da feira e a gente que anda na feira,
E a noite que pega na feira e a levanta no ar,
Andam por cima das copas das árvores cheias de sol,
Andam visivelmente por baixo dos penedos que luzem ao sol,
Aparecem do outro lado das bilhas que as raparigas levam à cabeça,
E toda esta paisagem de Primavera é a lua sobre a feira,
E toda a feira com ruídos e luzes é o chão deste dia de sol...

De repente alguém sacode esta hora dupla como numa peneira
E, misturado, o pó das duas realidades cai
Sobre as minhas mãos cheias de desenhos de portos
Com grandes naus que se vão e não pensam em voltar...
Pó de ouro branco e negro sobre os meus dedos...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,
Sozinha e contente como o dia de hoje...


VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal,
Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar de um cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo...

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde, tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa e o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

8 de Março de 1914


(Orpheu, nº 2, Abril-Maio-Junho de 1915)
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HINO A PÃ

HINO A PÃ

(Mestre Therion)

Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artemis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da âmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho êxul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão –
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!


Fernando Pessoa


O "Hino a Pã" é uma tradução do "Hymn to Pan", do prefácio do livro "Magick in Theory and Practice", de Aleister Crowley. A tradução foi publicada na revista "Presença" em Outubro de 1931.
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I - Esqueço-me das horas transviadas...

PASSOS DA CRUZ

I

Esqueço-me das horas transviadas...
O Outono mora mágoas nos outeiros
E põe um roxo vago nos ribeiros...
Hóstia de assombro a alma, e toda estradas...

Aconteceu-me esta paisagem, fadas
De sepulcros a orgíaco... Trigueiros
Os céus da tua face, e os derradeiros
Tons do poente segredam nas arcadas...

No claustro sequestrando a lucidez
Um espasmo apagado em ódio à ânsia
Põe dias de ilhas vistas do convés

No meu cansaço perdido entre os gelos,
E a cor do Outono é um funeral de apelos
Pela estrada da minha dissonância...


II

Há um poeta em mim que Deus me disse...
A Primavera esquece nos barrancos
As grinaldas que trouxe dos arrancos
Da sua efémera e espectral ledice...

Pelo prado orvalhado a meninice
Faz soar a alegria os seus tamancos...
Pobre de anseios teu ficar nos bancos
Olhando a hora como quem sorrisse...

Florir o dia a capitéis de Luz...
Violinos do silêncio enternecidos...
Tédio onde o só ter tédio nos seduz...

Minha alma beija o quadro que pintou...
Sento-me ao pé dos séculos perdidos
E cismo o seu perfil de inércia e voo...


III

Adagas cujas jóias velhas galas...
Opalesci amar-me entre mãos raras,
E, fluido a febres entre um lembrar de aras,
O convés sem ninguém cheio de malas...

O íntimo silêncio das opalas
Conduz orientes até jóias caras,
E o meu anseio vai nas rotas claras
De um grande sonho cheio de ócio e salas.

Passa o cortejo imperial, e ao longe
O povo só pelo cessar das lanças
Sabe que passa o seu tirano, e estruge

Sua ovação, e erguem as crianças...
Mas no teclado as tuas mãos pararam
E indefinidamente repousaram...


IV

Ó tocador de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse plos desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse

Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra – reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...

Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O gesto completo, lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Que vê-lo e que perdê-lo!... E o sonho é o resto.


V

Ténue, roçando sedas pelas horas,
Teu vulto ciciante passa e esquece,
E dia a dia adias para prece
O rito cujo ritmo só decoras...

Um mar longínquo e próximo humedece
Teus lábios onde, mais que em ti, descoras...
E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem qu'rer saber de ti a tarde desce...

Erra no anteluar a voz dos tanques...
Na quinta imensa gorgolejam águas,
Na treva vaga ao meu ter dor estanques...

Meu império é das horas desiguais,
E dei meu gesto lasso às algas mágoas
Que há para além de sermos outonais...


VI

Venho de longe e trago no perfil,
Em forma nevoenta e afastada,
O perfil de outro ser que desagrada
Ao meu actual recorte humano e vil.

Outrora fui talvez, não Boabdil,
Mas o seu mero último olhar, da estrada
Dado ao deixado vulto de Granada,
Recorte frio sob o unido anil...

Hoje sou a saudade imperial
Do que já na distância de mim vi...
Eu próprio sou aquilo que perdi...

E nesta estrada para Desigual
Florem em esguia glória marginal
Os girassóis do império que morri...


VII

Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma coisa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu doirado assomo...

Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola com ter
A árvore do meu uso o único pomo...

Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...


VIII

Ignorado ficasse o meu destino
Entre pálios (e a ponte sempre à vista),
E anel concluso a chispas de ametista
A frase falha do meu póstumo hino...

Florescesse em meu glabro desatino
O himeneu das escadas da conquista
Cuja preguiça, arrecadada, dista
Almas do meu impulso cristalino...

Meus ócios ricos assim fossem, vilas
Pelo campo romano, e a toga traça
No meu soslaio anónimas (desgraça

A vida) curvas sob mãos intranquilas...
E tudo sem Cleópatra teria
Findado perto de onde raia o dia...


IX

Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar.
Vejo em minha alma as velas vãs passar
E cada vela passa num sentido.

Um soslaio de sombras e ruído
Na transparente solidão do ar
Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados céus o pórtico ido...

E em palmares de Antilhas entrevistas
Através de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,

Imperfeito o sabor de compensando
O grande espaço entre os troféus alçados
Ao centro do triunfo em ruído e bando...


X

Aconteceu-me do alto do infinito
Esta vida. Através de nevoeiros,
Do meu próprio ermo ser fumos primeiros,
Vim ganhando, e através estranhos ritos

De sombra e luz ocasional, e gritos
Vagos ao longe, e assomos passageiros
De saudade incógnita, luzeiros
De divino, este ser fosco e proscrito...

Caiu chuva em passados que fui eu.
Houve planícies de céu baixo e neve
Nalguma coisa de alma do que é meu.

Narrei-me à sombra e não me achei sentido.
Hoje sei-me o deserto onde Deus teve
Outrora a sua capital de olvido...


XI

Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela
E oculta mão colora alguém em mim.
Pus a alma no nexo de perdê-la
E o meu princípio floresceu em Fim.

Que importa o tédio que dentro em mim gela,
E o leve Outono, e as galas, e o marfim,
E a congruência da alma que se vela
Com os sonhados pálios de cetim?

Disperso... E a hora como um leque fecha-se...
Minha alma é um arco tendo ao fundo o mar...
O tédio? A mágoa? A vida? O sonho? Deixa-se...

E, abrindo as asas sobre Renovar,
A erma sombra do voo começado
Pestaneja no campo abandonado...


XII

Ela ia, tranquila pastorinha,
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...

«Em longes terras hás-de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...

Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora –

Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...


XIII

Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm,
Soam-me a um outro e anómalo sentido...

Inconscientemente me divido
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I - Andei léguas de sombra

EPISÓDIOS

A MÚMIA

I

Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-me as lâmpadas
Na alcova cambaleante.

Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tacto
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista,

Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.

Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.

A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.

E o deserto está agora
Virado para baixo.

A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.

Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.

Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.


II

Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.

Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.

Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.

E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.

O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Porque é que chove?


III

De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?

Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo –
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.

Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora –
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua –
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora

Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.


IV

As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.

Na Múmia a posição é absolutamente exacta.

Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.


V

Porque abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara
Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.

Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?

As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.

Sensação de ser só a minha espinha.

As espadas.


(Portugal Futurista, nº 1, 1917)
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SANTO ANTÓNIO

SANTO ANTÓNIO

Nasci exactamente no teu dia –
Treze de Junho, quente de alegria,
Citadino, bucólico e humano,
Onde até esses cravos de papel
Que têm uma bandeira em pé quebrado
Sabem rir...
Santo dia profano
Cuja luz sabe a mel
Sobre o chão de bom vinho derramado!

Santo António, és portanto
O meu santo,
Se bem que nunca me pegasses
Teu franciscano sentir,
Católico, apostólico e romano.

(Reflecti.
Os cravos de papel creio que são
mais propriamente, aqui,
Do dia de S. João...
Mas não vou escangalhar o que escrevi.
Que tem um poeta com a precisão?)

Adiante... Ia eu dizendo, Santo António,
Que tu és o meu santo sem o ser.
Por isso o és a valer,
Que é essa a santidade boa,
A que fugiu deveras ao demónio.
És o santo das raparigas,
És o santo de Lisboa,
És o santo do povo.
Tens uma auréola de cantigas,
E então
Quanto ao teu coração –
Está sempre aberto lá o vinho novo.

Dizem que foste um pregador insigne,
Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,
Etcetera...
Mas qual de nós vai tomar isso à letra?
Que de hoje em diante quem o diz se digne
Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

Qual santo! Olham a árvore a olho nu
E não a vêem, de olhar só os ramos.
Chama-se a isto ser doutor
Ou investigador.

Qual Santo António! Tu és tu.
Tu és tu como nós te figuramos.

Valem mais que os sermões que deveras pregaste
As bilhas que talvez não concertaste.
Mais que a tua longínqua santidade
Que até já o Diabo perdoou,
Mais que o que houvesse, se houve, de verdade
No que – aos peixes ou não – a tua voz pregou,
Vale este sol das gerações antigas
Que acorda em nós ainda as semelhanças
Com quando a vida era só vida e instinto,
As cantigas,
Os rapazes e as raparigas,
As danças
E o vinho tinto.

Nós somos todos quem nos faz a história.
Nós somos todos quem nos quer o povo.
O verdadeiro título de glória,
Que nada em nossa vida dá ou traz
É haver sido tais quando aqui andámos,
Bons, justos naturais em singeleza,
Que os descendentes dos que nós amámos
Nos promovem a outros, como faz
Com a imaginação que há na certeza,
O amante a quem ama,
E o faz um velho amante sempre novo.
Assim o povo fez contigo
Nunca foi teu devoto: é teu amigo,
Ó eterno rapaz.

(Qual santo nem santeza!
Deita-te noutra cama!)
Santos, bem santos, nunca têm beleza.
Deus fez de ti um santo ou foi o Papa?...
Tira lá essa capa!
Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico
Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

És o que és para nós. O que tu foste
Em tua vida real por mal ou bem,
Que coisas, ou não-coisas se te devem
Com isso a estéril multidão arraste
Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,
Essa prolixa nulidade, a que se chama história,
Que foste tu, ou foi alguém,
Só Deus o sabe, e mais ninguém.

És pois quem nós queremos, és tal qual
O teu retrato, como está aqui,
Neste bilhete postal.
E parece-me até já que te vi.

És este, e este és tu, e o povo é teu –
O povo que não sabe onde é o céu,
E nesta hora em que vai alta a lua
Num plácido e legítimo recorte,
Atira risos naturais à morte,
E cheio de um prazer que mal é seu,
Em canteiros que andam enche a rua.

Sê sempre assim, nosso pagão encanto,
Sê sempre assim!
Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,
Esquece a doutrina e os sermões.
De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.
Foste Fernando de Bulhões,
Foste Frei António –
Isso sim.
Porque demónio
É que foram pregar contigo em santo?


9-6-1935.
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I - Quando, despertos deste sono, a vida,

NO TÚMULO DE CHRISTIAN ROSENCREUTZ

Não tínhamos ainda visto o cadáver de nosso Pai prudente e sábio. Por isso afastámos para um lado o altar. Então pudemos levantar uma chapa forte de metal amarelo, e ali estava um belo corpo célebre, inteiro e incorrupto..., e tinha na mão um pequeno livro em pergaminho, escrito a oiro, intitulado T., que é, depois da Bíblia, o nosso mais alto tesouro nem deve ser facilmente submetido à censura do mundo.

FAMA FRATERNITATIS ROSEAE CRUCIS.

I

Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à Noite que nos a Alma obstrui,

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui.

Deus é o Homem de outro Deus maior:
Adão Supremo, também teve Queda;
Também, como foi nosso Criador,

Foi criado, e a Verdade lhe morreu...
De além o Abismo, Spírito Seu, Lha veda,
Aquém não a há no Mundo, Corpo Seu.


II

Mas antes era Verbo, aqui perdido
Quando a Infinita Luz, já apagada,
Do Caos, chão do Ser, foi levantada
Em Sombra, e o Verbo ausente escurecido.

Mas se a Alma sente a sua forma errada,
Em si, que é Sombra, vê enfim luzido
O Verbo deste Mundo, humano e ungido,
Rosa Perfeita, em Deus crucificada.

Então, senhores do limiar dos Céus,
Podemos ir buscar além de Deus
O Segredo do Mestre e o Bem profundo;

Não só de aqui, mas já de nós, despertos,
No sangue actual de Cristo enfim libertos
Do a Deus que morre a geração do Mundo.


III

Ah, mas aqui, onde irreais erramos,
Dormimos o que somos, e a verdade,
Inda que enfim em sonhos a vejamos,
Vemo-la, porque em sonho, em falsidade.

Sombras buscando corpos, se os achamos
Como sentir a sua realidade?
Com mãos de sombra, Sombras, que tocamos?
Nosso toque é ausência e vacuidade.

Quem desta Alma fechada nos liberta?
Sem ver, ouvimos para além da sala
De ser: mas como, aqui, a porta aberta?

...................................

Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala.
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Tece, amor, as grinaldas com que queres

Tece, amor, as grinaldas com que queres
Coroar o amor que nem sabemos ter,
Com brancas mãos em lento movimento
De papoulas e pobres malmequeres...
Tece-as para que ao menos o momento
Em que as teces nos possa pertencer.

Se para coroar o amor as teces
Pensas no amor tecendo-as, e assim amas;
Se vendo-te, em ti vejo que o conheces
Amo contigo o amor em que tu pensas.
E um momento o amor queima as suas chamas
Na ara das nossas almas já pretensas.

Mas se a grinalda é feita, o amor cessou.
Se é preciso entre nós o gesto e o gozo
Nunca o pensado amor levanta o voo.
Nunca da nossa noite de sentir
Raiou o sol do acto, e o olhar cobiçou
Uma coisa real que vá fruir.

No sonho do que nunca pode haver
Entre nós, porque há em nós o pensamento,
Gastamos o desejo sem o ter.
A taça cai do gesto mal seguro
Porque pensamos em beber, e o intento
Cansa o braço, e é entornado o néctar puro.
Viemos, meu amor, no fim da tarde.
O que há de sol é o que resta acima
Dos montes, poesia baça e sonho que arde,
E só pura saudade os céus anima.
O nosso olhar não ousa olhar o outro.

Outros tiveram por seu tempo o dia
Gozaram outros quando o sol era alto,
A vergonha que há em nós de sua orgia
É a vergonha de nós a não ousarmos.
Nós pensamos no amor em sobressalto
E para amarmos só nos falta amarmos.

Os deuses foram-se, e consigo foi
A clareza de alma para (com) a vida.
O que ontem era o gozo, é o que hoje dói.
O que ontem era a coisa possuída
É hoje só a coisa apetecida,
Ainda desejada e não ousada.
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O ÚLTIMO SORTILÉGIO

O ÚLTIMO SORTILÉGIO

«Já repeti o antigo encantamento
E a grande Deusa aos olhos se negou.
Já repeti, nas pausas do amplo vento,
As orações cuja alma é um ser fecundo.
Nada me o abismo deu ou o céu mostrou.
Só o vento volta onde estou toda e só,
E tudo dorme no confuso mundo.

«Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.

«Minha varinha, com que da vontade
Falava às existências essenciais,
Já não conhece a minha realidade.
Já, se o círculo traço, não há nada.
Murmura o vento alheio extintos ais,
E ao luar que sobe além dos matagais
Não sou mais do que os bosques ou a estrada.

«Já me falece o dom com que me amavam.
Já me não torno a forma e o fim da vida
A quantos que, buscando-os, me buscavam.
Já, praia, o mar dos braços não me inunda.
Nem já me vejo ao sol saudado erguida,
Ou, em êxtase mágico perdida,
Ao luar, à boca da caverna funda.

«Já as sacras potências infernais,
Que, dormentes sem deuses nem destino,
À substância das coisas são iguais,
Não ouvem minha voz ou os nomes seus.
A música partiu-se do meu hino.
Já meu furor astral não é divino
Nem meu corpo pensado é já um Deus.

«E as longínquas deidades do atro poço,
Que tantas vezes, pálida, evoquei
Com a raiva de amar em alvoroço,
Inevocadas hoje ante mim estão.
Como, sem que as amasse, eu as chamei,
Agora, que não amo, as tenho, e sei
Que meu vendido ser consumirão.

«Tu, porém, Sol, cujo ouro me foi presa,
Tu, Lua, cuja prata converti,
Se já não podeis dar-me essa beleza
Que tantas vezes tive por querer,
Ao menos meu ser findo dividi –
Meu ser essencial se perca em si,
Só meu corpo sem mim fique alma e ser!

«Converta-me a minha última magia
Numa estátua de mim em corpo vivo!
Morra quem sou, mas quem me fiz e havia,
Anónima presença que se beija,
Carne do meu abstracto amor cativo,
Seja a morte de mim em que revivo;
E tal qual fui, não sendo nada, eu seja!»


(Presença, nº 29, Dezembro de 1930)
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VI - O maestro sacode a batuta,

VI

O maestro sacode a batuta,
E lânguida e triste a música rompe...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal

Atirando-lhe com uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo,

Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontro à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos..,
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás da minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
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Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol

Azul, ou verde, ou roxo, quando o sol
O doura falsamente de vermelho,
O mar é áspero [?], casual [?] ou mo(le),
É uma vez abismo e outra espelho.
Evoco porque sinto velho
O que em mim quereria mais que o mar
Já que nada ali há por desvendar.

Os grandes capitães e os marinheiros
Com que fizeram a navegação,
Jazem longínquos, lúgubres parceiros
Do nosso esquecimento e ingratidão.
Só o mar, às vezes, quando são
Grandes as ondas e é deveras mar
Parece incertamente recordar.

Mas sonho... O mar é água, é agua nua,
Serva do obscuro ímpeto distante
Que, como a poesia, vem da lua
Que uma vez o abate outra o levanta.
Mas, por mais que descante
Sobre a ignorância natural do mar,
Pressinto-o, vazante, a murmurar.

Quem sabe o que é a alma? Quem conhece
Que alma há nas coisas que parecem mortas.
Quanto em terra ou em nada nunca esquece.
Quem sabe se no espaço vácuo há portas?
Ó sonho que me exortas
A meditar assim a voz do mar,
Ensina-me a saber-te meditar.

Capitães, contramestres — todos nautas
Da descoberta infiel de cada dia ó
Acaso vos chamou de ignotas flautas
A vaga e impossível melodia.
Acaso o vosso ouvido ouvia
Qualquer coisa do mar sem ser o mar
Sereias só de ouvir e não de achar?

Quem atrás de intérminos oceanos
Vos chamou à distância como [?] quem
Sabe que há nos corações humanos
Não só uma ânsia natural de bem
Mas, mais vaga, mais subtil também,
Uma coisa que quer o som do mar
E o estar longe de tudo e não parar.

Se assim é, e se vós e o mar imenso
Sois qualquer coisa, vós por o sentir
E o mar por o ser, disto que penso;
Se no fundo ignorado do existir
Há mais alma que a que pode vir
À tona vã de nós, como à do mar,
Fazei‑me livre, enfim, de o ignorar.

Dai-me uma alma transposta de argonauta,
Fazei que eu tenha, como o capitão
Ou o contramestre, ouvidos para a flauta
Que chama ao longe o nosso coração,
Fazei-me ouvir, como a um perdão,
Numa reminiscência de ensinar,
O antigo português que fala o mar!
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SÃO JOÃO

S. JOÃO

Ó Precursor, fizeste-a bonita!
Não que teu Cristo, encarnação do Bem –
Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.
O mal são os que após, sem mística divina
Nem ternura cristã, ou só humana,
Meteram a Jesus na cela da doutrina
Com as algemas do ódio manietado
Para depois manchar de falsa fé
O pobre homem que todo homem é

A cruel multidão negramente infinita
Que tem sido o algoz ou o ladrão
Da ingénua humanidade aflita –
Esses que, aqui mesmo, pelos modos,
Dão ao inferno realização...

Ah, não podiam ser piores, nem
Que a mulher do Diabo, se ele a tem,
Os tivesse parido a todos.

Eu bem sei que houve muito santo e crente,
Muito puro, bondoso e inocente.
Bem sei, bem sei:
Sei-o eu e sabe-o toda a gente.

Mas esses, cuja alma está em Cristo
São só isto –
Qualquer remédio que se dissolvesse
No chá que para isso há,
E cujo gosto nele se perdesse;
O chá fica sabendo só a chá.
Se o remédio faz bem,
Não o sabe ninguém.
Que o chá não presta, não duvida alguém.

Sabemos isso, e sabê-lo-ia antes
De todos nós teu Mestre que viria,
Profeta, Deus e guia dos errantes,
Quão dolorosamente o saberia?
Sei que houve astros no céu da fé vazia.
Sei, mas repara que falso isso soa!
Por mais astros que a noite use brilhantes,
Que Diabo!, a noite não se chama dia.

Ó Precursor! Fizeste-a boa!

Daí, para nós, és de Lisboa,
Não és o precursor de nada.
És um rapaz ainda menino
Que tem por missão boa,
Por missão sorridente e sossegada
Ter ao colo um cordeiro pequenino.

Lá o que esse cordeiro significa
Não tem cheiro
Para o povo, que tem a alma rica
Da emoção que não conhece.
Para ele o cordeiro é um cordeiro,
E o menino sorri e a vida esquece.

O resto são fogueiras
E os saltos dados a gritar
Com um medo exagerado
Feito tudo de maneira
A mostrar
O riso, as pernas e o agrado.
É quente e anónima a aragem,
Tudo é juventude e viço
Num arraial multicolor e vasto.
Bonito serviço
Como homenagem
A quem, ainda com cabeça, foi um casto!

Mas é assim que és
E é assim que serás,
Até que pisem esta terra os pés
Do último fado que o Destino traz.

Então, esperamos, eu e todos,
Ver-te «surgir no céu», como quem vence
Tudo que é realidade ou ilusão
Por o menino ser que lhe pertence,
E os seus bons e santos modos
«Com o cordeirinho na mão»,
Como te viu Catulo Cearense.

Mas, desçamos à terra,
Que, por enquanto, o céu aterra,
Porque antes disso mete a morte.
Há muita coisa desconhecida
Na tua vida.
Tens muita sorte
Em ninguém saber da partida
Que em mil setecentos e dezassete
Tu fizeste à Igreja constituída.
Estás, eu bem sei, cansado
Com o que a Igreja se intromete
Com tua vida e o teu divino fado.

(E) foi então que, para te vingar
E à maneira de santo, os arreliar
Desceste mansamente à terra
Perfeitamente disfarçado
E fizeste entre os homens da razão
Um milagre assinado,
Mas cuja assinatura se erra
Quando em teu dia, S. João do Verão,
Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.
Isto agora é que é bom,
Se bem que vagamente rocambólico.
Eu a julgar-te até católico,
E tu sais-me mação.

Bem, aí é que há espaço para tudo,
Para o bem temporal do mundo vário.
Que o teu sorriso doure quanto estudo
E o teu Cordeiro
Me faça sempre justo e verdadeiro,
Pronto a fazer falar o coração
Alto e bom som
Contra todas as fórmulas do mal,
Contra tudo que torna o homem precário.
Se és mação,
Sou mais do que mação – eu sou templário.

Esqueço-te santo
Deslembro o teu indefinido encanto.

Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.
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SÃO PEDRO

S. PEDRO

Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves –
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso – fecharem-me – não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade – Deus dá a Deus –
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.

Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exausto,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.

Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cínicos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu posto quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo –
Umas barbas com S. Pedro lá por trás.

É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.

Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro –
De popular, que bem que soa!)

Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Como um chavelho,)

Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.

Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Teu último gesto seja,
Um gesto volvente e mudo.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade.


9.6.1935.


(Esp. 63-17/63-17-27)
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À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

Longe da fama e das espadas
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.

Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que Passado
A terra e os céus.

Ali o gesto, a astúcia, a lida,
São para ele, sem as ver,
Vácuo de acção sombra perdida,
Sopro sem ser.

Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor conserva?
Tudo acabou?

No mistério onde a Morte some
Aquilo a que a alma chama a vida.
Que resta dele a nós – só o nome
E a fé perdida?

Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe –
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?

Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.

Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!

Quem ele foi sabe-o a Sorte.
Sabe-o o Mistério e a sua lei.
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!

Não é com fé que nós não cremos
Que ele não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Em nossa frente.

No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.

Ainda de longe nos anima,
Indo na alma nos conduz –
Gládio de fé erguido acima
Da nossa cruz!

Nada sabemos do que oculta
O véu igual de noite e dia.
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.

Apraz no que em nós quer que seja
Qual Deus quis nosso querer tosco.
Crer que ele vela, benfazeja
Sombra connosco.

Não sai da nossa alma a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Ele inda pensa em nós e é
O bem-amado.

Tenhamos fé, porque ele foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o herói
Sob o ermo céu.

E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte,
Ele já não.

Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornará, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.

Tornará feito qualquer outro,
Qualquer coisa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Inda compele;

Inda comanda, e a armada ida
Para os campos da Redenção,
Às vezes leva à frente, erguida
Spada, a Ilusão.

E um raio só do ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.

Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem amo.
É lenha só a Realidade:
A fé é a chama.

Mas ai, que a fé já não tem forma
Na matéria e na cor da Vida.
E, pensada, em dor se transforma
A fé perdida!

Pra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!

Mas basta o nome e basta a glória
Para ele estar connosco, e ser
Carnal presença de memória
A amanhecer;

Spectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ânsia,
Que fala com oculta voz
Na alma, a distância;

E a nossa própria dor se torna
Uma vaga ânsia, um sperar vago,
Como a erma brisa que transtorna
Um ermo lago.

Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque ele pôde ser, Deus não
Nos desprezou.

Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus;

E, por directa consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.

Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com nocturno véu.
Deus pra que no-lo deu, se era
Pra o tornar seu?

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.

E se assim é, se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;

Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto – por que espera?
Por que não vem?

Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!

Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta –
Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!

E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!

Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
Strela do céu.

Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;

E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longínqua chama –
O DESEJADO.

Sim, só há a esp'rança, como aquela
– E quem sabe se a mesma? – quando
Se foi de Avis a última estrela
No campo infando.

Novo Alcácer Quibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Por que pecado novo o açoite
Assim é dado?

Só resta a fé, que a sua memória
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga ilusória
A quem amou.

Flor alta do paul da grei,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou El-Rei
Dom Sebastião.

O sopro de ânsia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,

Bater à porta ao nosso gesto,
Fazer apelo no nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,

Nele um momento clareou,
A noite antiga se seguiu,
Mas que segredo é que ficou
No escuro frio?

Que memória, que luz passada
Projecta, sombra, no futuro,
Dá no alma? Que longínqua espada
Brilha no escuro?

Que nova luz virá raiar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ânsia feliz.

Quem quer que sejas, lá no abismo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um misticismo
A vaga luz

Com que a noite erma inda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da esp'rança que há no dia,
Que não é vã.

E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redentora
Ao mal que há.

E um novo verbo ocidental
Encarnado em heroísmo e glória,
Traga por seu broquel real
Tua memória!

Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portais extremos
Por descobrir,

Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!

Não era extinta a antiga chama
Se tu e o amor puderam ser.
Entre clarins te a glória aclama,
Morto a vencer!

E, porque foste, confiando
EM QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,

Até que Deus o laço solte
Que<
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POEMA DE AMOR EM ESTADO NOVO

Tens o olhar misterioso
Com um jeito nevoento,
Indeciso, duvidoso,
Minha Marta Francisca,
Meu amor, meu orçamento!

A tua face de rosa
Tem o colorido esquivo
De uma nota oficiosa.
Quem dera ter-te em meus braços,
Ó meu saldo positivo!

E o teu cabelo — não choro
Seu regresso ao natural —Abandona o padrão-ouro
Amor, pomba, estrada, porta,
Sindicato nacional!

Não sei por que me desprezas.
Fita-me mais um instante,
Lindo corte nas despesas,
Adorada abolição
Da dívida flutuante!

Com que madrigais mostrar-te
Este amor que é chama viva?
Ouve, escuta: vou chamar-te
Assembleia Nacional
Câmara Corporativa.

Como te amo, como, como,
Meu Acto Colonial!
De amor já quase não como,
Meu Estatuto de Trabalho,
Meu Banco de Portugal!

Meu crédito no estrangeiro!
Meu encaixe — ouro adorado!
Serei sempre o teu romeiro...
Pousa a cabeça em meu ombro,
Ó meu Conselho de Estado!

Ó minha corporativa,
Minha lei de Estado Novo,
Não me sejas mais esquiva!
Meu coração quer guarida
Ó linda Casa do Povo!

União Nacional querida,
Teus olhos enchem de mágoa
A sombra da minha vida
Que passa como uma esquadra
Sobre a energia da água.

Que aristocrático ri,
O teu cabelo em cifrões — Finanças em mise-en-plis! —
Meu activo plebiscito,
Nunca desceste a eleições!

Por isso nunca me escolhes
E a minha esperança é vã.
Nem sequer por dó me acolhes,
Minha imprevidente linda
Civilização cristã!

Bem sei: por estes meus modos
Nunca me podes amar.
Olha, desculpa-mas todas.
Estou seguindo as directrizes
Do professor Salazar.
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