Fernando Pessoa
Fernando António Nogueira Pessoa, mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.
1888-06-13 Lisboa, Portugal
1935-11-30 Lisboa
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I - Andei léguas de sombra
EPISÓDIOS
A MÚMIA
I
Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-me as lâmpadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tacto
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista,
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.
A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.
II
Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.
E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Porque é que chove?
III
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo –
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora –
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua –
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
IV
As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exacta.
Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
V
Porque abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara
Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
Sensação de ser só a minha espinha.
As espadas.
(Portugal Futurista, nº 1, 1917)
A MÚMIA
I
Andei léguas de sombra
Dentro em meu pensamento.
Floresceu às avessas
Meu ócio com sem-nexo,
E apagaram-me as lâmpadas
Na alcova cambaleante.
Tudo prestes se volve
Um deserto macio
Visto pelo meu tacto
Dos veludos da alcova,
Não pela minha vista,
Há um oásis no Incerto
E, como uma suspeita
De luz por não-há-frinchas,
Passa uma caravana.
Esquece-me de súbito
Como é o espaço, e o tempo
Em vez de horizontal
É vertical.
A alcova
Desce não sei por onde
Até não me encontrar.
Ascende um leve fumo
Das minhas sensações.
Deixo de me incluir
Dentro de mim. Não há
Cá-dentro nem lá-fora.
E o deserto está agora
Virado para baixo.
A noção de mover-me
Esqueceu-se do meu nome.
Na alma meu corpo pesa-me.
Sinto-me um reposteiro
Pendurado na sala
Onde jaz alguém morto.
Qualquer coisa caiu
E tiniu no infinito.
II
Na sombra Cleópatra jaz morta.
Chove.
Embandeiraram o barco de maneira errada.
Chove sempre.
Para que olhas tu a cidade longínqua?
Tua alma é a cidade longínqua.
Chove friamente.
E quanto à mãe que embala ao colo um filho morto –
Todos nós embalamos ao colo um filho morto.
Chove, chove.
O sorriso triste que sobra a teus lábios cansados,
Vejo-o no gesto com que os teus dedos não deixam os teus anéis.
Porque é que chove?
III
De quem é o olhar
Que espreita por meus olhos?
Quando penso que vejo,
Quem continua vendo
Enquanto estou pensando?
Por que caminhos seguem,
Não os meus tristes passos,
Mas a realidade
De eu ter passos comigo?
Às vezes, na penumbra
Do meu quarto, quando eu
Para mim próprio mesmo
Em alma mal existo,
Toma um outro sentido
Em mim o Universo –
É uma nódoa esbatida
De eu ser consciente sobre
Minha ideia das coisas.
Se acenderem as velas
E não houver apenas
A vaga luz de fora –
Não sei que candeeiro
Aceso onde na rua –
Terei foscos desejos
De nunca haver mais nada
No Universo e na Vida
De que o obscuro momento
Que é minha vida agora
Um momento afluente
Dum rio sempre a ir
Esquecer-se de ser,
Espaço misterioso
Entre espaços desertos
Cujo sentido é nulo
E sem ser nada a nada.
E assim a hora passa
Metafisicamente.
IV
As minhas ansiedades caem
Por uma escada abaixo.
Os meus desejos balouçam-se
Em meio de um jardim vertical.
Na Múmia a posição é absolutamente exacta.
Música longínqua,
Música excessivamente longínqua,
Para que a Vida passe
E colher esqueça aos gestos.
V
Porque abrem as coisas alas para eu passar?
Tenho medo de passar entre elas, tão paradas conscientes.
Tenho medo de as deixar atrás de mim a tirarem a Máscara
Mas há sempre coisas atrás de mim.
Sinto a sua ausência de olhos fitar-me, e estremeço.
Sem se mexerem, as paredes vibram-me sentido.
Falam comigo sem voz de dizerem-me as cadeiras.
Os desenhos do pano da mesa têm vida, cada um é um abismo.
Luze a sorrir com visíveis lábios invisíveis
A porta abrindo-se conscientemente
Sem que a mão seja mais que o caminho para abrir-se.
De onde é que estão olhando para mim?
Que coisas incapazes de olhar estão olhando para mim?
Quem espreita de tudo?
As arestas fitam-me.
Sorriem realmente as paredes lisas.
Sensação de ser só a minha espinha.
As espadas.
(Portugal Futurista, nº 1, 1917)
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