IV - Tudo É Tão Simples
De manhã na aldeia
os meninos e a luz me receberam.
Os camponeses me mostraram todas
suas terras conquistadas,
a colheita comum,
os celeiros, as casas
do proprietário antigo.
Mostraram-me o lugar
em que as mães pobres
despenteavam suas filhas,
ou as vendiam, não faz tanto tempo,
ai! não faz tanto tempo. Agora parece
um sonho mau,
a peste, a fome,
os norte-americanos,
os japoneses, os banqueiros
de Londres e da França,
todos vinham civilizar
a China arrancando-lhe as entranhas,
vendendo-a
nas Bolsas do Mundo,
prostituindo-a em Shanghai.
Queriam fazer dela
um vasto cabaré para as tropas
de desembarque, um lugar
de seda e fome.
Iam os esqueletos
junto ao rio
amontoando-se,
as aldeias choravam
fumaça negra
e pestilência.
“Aai!, como cabem
na morte
tantos mortos da China”,
exclamava
a senhora elegante
lendo os jornais.
Junto ao rio os mortos
eram montanhas de cinza, a fome
caminhava nas rotas da China
e em Nova York, Chiang Kai Chek
adquiria edifícios
em sociedade com Truman e Eisenhower.
Cheirava a esterco e ópio
a antiga cidadela da melancolia.
Os cárceres
se enchiam
também de mortos.
Os estudantes eram degolados
por um decreto norte-americano
na praça do povo,
e enquanto isso a revista Life
publicava a foto
de Mme. Chiang Kai Chek, cada vez
mais elegante.
Afasta-te, mal sonho!
Afasta-te da China!
Afasta-te do mundo!
Vem comigo à aldeia!
Entro
e vejo os celeiros,
o sorriso
da China
libertada:
os camponeses
repartiram a terra.
Desde Yennan
desceu a liberdade
com pés descalços ou sapatos rotos
de campônio e soldado.
Oh liberdade da China,
és minha musa,
vais vestida de azul
num caminho
poeirento.
Não pudeste lavar-te
nem secar-te do sangue, mas marchas e marchas
e contigo
a terra escura marcha,
marcha a Bolívia esquecida
pela liberdade, marcha o Chile,
virá o Irã contigo,
entram contigo na aldeia,
com minha musa.
Mocinha vestida
de azul guerreiro,
musa do vento,
das terras livres,
a ti canto:
ao cinturão de couro e a teu rifle,
a tua boca seca,
eu canto.
Musa minha,
entra com fogo e pólvora
em todas as ruas do mundo,
entra com suor e sangue,
já terás tempo
de lavar-te, agora
avança, avança, avança!
Tudo vi na aldeia
da China libertada.
Nada a mim disseram.
Os meninos derramados
não me deixavam transitar.
Comi seu arroz, suas frutas,
bebi seu vinho de arroz pálido.
Tudo me mostraram
com um orgulho
que conheci na Romênia,
que conheci na Polônia,
que conheci na Hungria.
E o orgulho novo
do camponês que à luz do mundo
de manhã,
pela primeira vez vê a farinha,
pela primeira vez olha as frutas,
pela vez primeira vê crescer o trigo,
e então
ainda que seja mais velho que o mundo
te mostra o arroz e as uvas,
os ovos de galinha,
e não sabe que dizer.
Tudo é seu
pela vez primeira.
Todo o arroz,
toda a terra,
toda a vida.
Que fácil é quando se conseguiu
a felicidade, que simples
é tudo.
Quando tu e eu, amor meu, nos beijamos,
que simpleza é ser felizes.
Mas esqueces
quanto andaste
sem encontrar-me
e quantas vezes
te desviaste
até cair cansada.
E pois,
tu não sabias
que eu andava buscando-te
e que meu coração se ia desviando
à amargura
ou ao vazio.
Não sabíamos
que se marchássemos
adiante, adiante,
reto, reto,
sempre, sempre,
tu me encontradas
e eu te encontraria.
Vês, assim aos povos
lhes sucede:
não sabem,
não compreendem,
podem equivocar-se,
mas andam sempre
e se encontram,
se encontram a si mesmos,
como me encontraste,
e então
tudo parece simples,
mas não foi simples
andar às cegas.
Havia que aprender da vida,
do inimigo, da escuridão,
com seus textos,
e ali estava Mao ensinando
e ali estava o Partido
com sua severidade e sua ternura,
e agora rapazes chineses,
dos campos,
musa jovem,
não esqueçamos:
tudo parece simples
como a água.
Não é verdade.
A luta não é a água,
é o sangue.
Vem de longe.
Há mortos:
nossos irmãos caídos.
Todo o caminho
está cheio de mortos
Que não esqueceremos.
E a aldeia
não é simples,
o ar não é simples,
traz palavras,
traz canções,
traz rostos,
traz dias passados,
traz cárceres,
traz muros
salpicados de sangue e agora
doce é a aldeia,
doce é a vitória.
Levantemos a taça
pela musa,
pelos que não esquecemos
e os que reconstroem,
pelos que caíram
e continuam vivendo
em toda parte,
porque largo é o mundo
e em toda parte sempre
caiu o sangue,
o mesmo:
nosso sangue.
Agora
entro na aldeia
do campo libertado
e doce é o ar
como nenhum
e respiro a vida,
a terra,
a vitória.
A terra, se estendemos
sobre sua pele as mãos,
é a mesma,
aqui ou em Patagônia
ou nas ilhas do mar.
A terra é sempre
a mesma,
e agora
entrando em tua aldeia,
olor de pão,
olor de fumo,
olor de trigo,
cheiro de água e vinho,
é minha terra,
é toda a terra.
E então
saudei com respeito
o território antigo,
sua beleza,
sua agricultura unânime,
seu rosto e pó e orvalho,
a liberdade brilhando
no sorriso,
e pensei em minhas margens,
em minha bandeira,
em minha areia, em minha espuma,
em todas as minhas estrelas.
E assim nessa manhã
da aldeia da China
entrei cantando,
porque meu coração
se transformou em guitarra
e todas as cordas ressoaram
recordando minha terra,
cantaram
recordando a minha pátria,
além, na América.
Quando alguma vez eu chegar
à casa do povo
em terra livre,
tudo
parecerá tão simples,
tão singelo,
como o beijo que agora
nos damos, amor meu.