Outro Adeus
Sob o teto e a ferrugem
do mercado, em Fortaleza,
ele tocava a rabeca
e era cego. Tocava
com a cabeça inclinada,
esta mesma que vejo
na fieira de músicos
sobre a porta da igreja
larga e ocre de Sória,
os mesmos pés descalços
e chagados na pedra,
e a voz que me chega,
baixa, rouca, irritante,
toda sujo e pobreza.
Como dizer a outrem
o que está no meu sangue?
Que levei ao curral
os corcéis de Patroclo
e deitei minha nuca
sobre um colo de espinhos?
Mas, em Medinaceli,
Alberca e entardeceres,
senti o mesmo cheiro
de palha, urina e pêlo
de um jumento suado
sob o sol de Sobral
e o rancor da saudade
e a saudade sonhada.
Por que reparo tanto
em cada coisa, atento
ao poro, ao grão, ao risco,
ao veio, à sombra e ao brilho?
Para me amanhecer.
E não ter, à distância
de outro chão e outra luz,
esta carne. Contemplo
o cego e o céu do tempo:
um odor de farelo
repousa a servidão
deste corpo em que perco
o que em nós há de encontro
entre o ausente e o eterno.
In: SILVA, Alberto da Costa e. As linhas da mão. Pref. Antônio Carlos Villaça. Rio de Janeiro: Difel; Brasília: INL, 1978. Poema integrante da série As Linhas da Mão.
do mercado, em Fortaleza,
ele tocava a rabeca
e era cego. Tocava
com a cabeça inclinada,
esta mesma que vejo
na fieira de músicos
sobre a porta da igreja
larga e ocre de Sória,
os mesmos pés descalços
e chagados na pedra,
e a voz que me chega,
baixa, rouca, irritante,
toda sujo e pobreza.
Como dizer a outrem
o que está no meu sangue?
Que levei ao curral
os corcéis de Patroclo
e deitei minha nuca
sobre um colo de espinhos?
Mas, em Medinaceli,
Alberca e entardeceres,
senti o mesmo cheiro
de palha, urina e pêlo
de um jumento suado
sob o sol de Sobral
e o rancor da saudade
e a saudade sonhada.
Por que reparo tanto
em cada coisa, atento
ao poro, ao grão, ao risco,
ao veio, à sombra e ao brilho?
Para me amanhecer.
E não ter, à distância
de outro chão e outra luz,
esta carne. Contemplo
o cego e o céu do tempo:
um odor de farelo
repousa a servidão
deste corpo em que perco
o que em nós há de encontro
entre o ausente e o eterno.
In: SILVA, Alberto da Costa e. As linhas da mão. Pref. Antônio Carlos Villaça. Rio de Janeiro: Difel; Brasília: INL, 1978. Poema integrante da série As Linhas da Mão.
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