Gil Vicente
Gil Vicente é considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, ator e encenador.
Guimarães
1536 Évora
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Assi como foi cousa
Assi como foi cousa muito necessária haver nos caminhos estalagens, pera repouso e refeição dos cansados caminhantes, assi foi cousa conveniente que nesta caminhante vida houvesse uma estalajadeira, pera refeição e descanso das almas que vão caminhantes pera a eternal morada de Deus. Esta estalajadeira das almas é a Madre Santa Igreja, a mesa é o altar, os manjares as insígnias da Paixão. E desta perfiguração trata a obra seguinte.
Figuras: Alma, Anjo Custódio, Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerónimo, S. Tomás, Dous Diabos.
Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D.#Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom#Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1518.
Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: S.#Tomás, S.#Jerónimo, Santo#Ambrósio e Santo#Agostinho. E diz Agostinho:
AGOSTINHO Necessário foi, amigos,
que nesta triste carreira
desta vida,
pera os mui p'rigosos p'rigos
dos imigos,
houvesse alguma maneira
de guarida.
Porque a humana transitória
natureza vai cansada
em várias calmas;
nesta carreira da glória
meritória,
foi necessário pousada
pera as almas.
Pousada com mantimentos,
mesa posta em clara luz,
sempre esperando
com dobrados mantimentos
dos tormentos
que o Filho de Deus, na Cruz,
comprou, penando.
Sua morte foi avença,
dando, por dar-nos paraíso,
a sua vida
apreçada, sem detença,
por sentença,
julgada a paga em proviso,
e recebida.
A Sua mortal empresa
foi santa estalajadeira
Igreja Madre:
consolar à sua despesa,
nesta mesa,
qualquer alma caminheira,
com o Padre
e o Anjo Custódio aio.
Alma que lhe é encomendada,
se enfraquece
e lhe vai tomando raio
de desmaio,
se chegando a esta pousada,
se guarece.
Vem o Anjo Custódio, com a Alma, e diz:
ANJO Alma humana, formada
de nenhüa cousa feita,
mui preciosa,
de corrupção separada,
e esmaltada
naquela frágoa perfeita,
gloriosa!
Planta neste vale posta
pera dar celestes flores
olorosas,
e pera serdes tresposta
em a alta costa,
onde se criam primores
mais que rosas!
Planta sois e caminheira,
que ainda que estais, vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
é ser herdei
da glória que conseguis:
andai prestes.
Alma bem-aventurada,
dos anjos tanto querida,
não durmais!
Um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.
ALMA Anjo que sois minha guarda,
olhai por minha fraqueza
terreal!
de toda a parte haja resguarda,
que não arda
a minha preciosa riqueza
principal.
Cercai-me sempre ò redor
porque vou mui temerosa
de contenda.
Ó precioso defensor
meu favor!
Vossa espada lumiosa
me defenda!
Tende sempre mão em mim,
porque hei medo de empeçar,
e de cair
ANJO Pera isso sam e a isso vim;
mas enfim,
cumpre-vos de me ajudar
a resistir
Não vos ocupem vaidades,
riquezas, nem seus debates.
Olhai por vós;
que pompas, honras, herdades
e vaidades,
são embates e combates
pera vós.
Vosso livre alvedrio,
isento, forro, poderoso
vos é dado
polo divinal poderio
e senhorio,
que possais fazer glorioso
vosso estado.
Deu-vos livre entendimento,
e vontade libertada
e a memória,
que tenhais em vosso tento
fundamento,
que sois por Ele criada
pera a glória.
E vendo Deus que o metal
em que vos pôs a estilar,
pera merecer,
que era muito fraco e mortal,
e, por tal,
me manda a vos ajudar
e defender.
Andemos a estrada nossa;
olhai: não torneis atrás,
que o imigo
à vossa vida gloriosa
porá grosa,
Não creiais a Satanás,
vosso perigo!
Continuai ter o cuidado
no fim de vossa jornada,
e a memória,
que o espírito atalaiado
do pecado
caminha sem temer nada
pera a Glória.
E nos laços infernais,
e nas redes de tristura
tenebrosas
da carreira, que passais,
não caiais:
siga vossa fermosura
as gloriosas.
Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela e diz:
DIABO Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, pera onde isso?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis
se sois humana?
Não cureis de vos matar
que ainda estais em idade
de crecer
Tempo há i pera folgar
e caminhar
Vivei à vossa vontade
e havei prazer.
Gozai, gozai dos bens da terra,
Procurai por senhorios
e haveres.
Quem da vida vos desterra
à triste serra?
Quem vos fala em desvarios
por prazeres?
Esta vida é descanso,
doce e manso,
não cureis doutro paraíso.
Quem vos põe em vosso siso
outro remanso?
ALMA Não me detenhais aqui,
leixai-me ir que em al me fundo.
DIABO Oh! Descansai neste mundo
que todos fazem assi:
Não são em#balde os haveres.
não são em balde os deleites,
e fortunas;
não são debalde os prazeres
e comeres:
tudo são puros afeites
das criaturas:
Pera os homens se criaram.
Dai folga à vossa passagem
d'hoje a mais:
descansai, pois descansaram
os que passaram
por esta mesma romagem
que levais.
O que a vontade quiser
quanto o corpo desejar,
tudo se faça.
Zombai de quem vos quiser
reprender
querendo-vos marteirar
tão de graça.
Tornara-me, se a vós fora.
Is tão triste, atribulada,
que é tormenta.
Senhora, vós sois senhora
emperadora,
não deveis a ninguém nada.
Sede isenta.
ANJO Oh! andai; quem vos detém?
Como vindes pera a Glória
devagar!
Ó meu Deus! Ó sumo bem!
Já ninguém
não se preza da vitória
em se salvar!
Já cansais, alma preciosa?
Tão asinha desmaiais?
Sede esforçada!
Oh! Como viríeis trigosa
e desejosa,
se vísseis quanto ganhais
nesta jornada!
Caminhemos, caminhemos.
Esforçai ora, Alma santa,
esclarecida!
Adianta-se o Anjo, e torna Satanás:
DIABO Que vaidades e que extremos
tão supremos!
Pera que é essa pressa tanta?
tende vida.
Is muito desautorizada,
descalça, pobre, perdida,
de remate:
Figuras: Alma, Anjo Custódio, Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerónimo, S. Tomás, Dous Diabos.
Este Auto presente foi feito à muito devota Rainha D.#Leonor e representado ao mui poderoso e nobre Rei Dom#Emanuel, seu irmão, por seu mandado, na cidade de Lisboa, nos Paços da Ribeira, em a noite de Endoenças. Era do Senhor de 1518.
Está posta uma mesa com uma cadeira. Vem a Madre Santa Igreja com seus quatro doutores: S.#Tomás, S.#Jerónimo, Santo#Ambrósio e Santo#Agostinho. E diz Agostinho:
AGOSTINHO Necessário foi, amigos,
que nesta triste carreira
desta vida,
pera os mui p'rigosos p'rigos
dos imigos,
houvesse alguma maneira
de guarida.
Porque a humana transitória
natureza vai cansada
em várias calmas;
nesta carreira da glória
meritória,
foi necessário pousada
pera as almas.
Pousada com mantimentos,
mesa posta em clara luz,
sempre esperando
com dobrados mantimentos
dos tormentos
que o Filho de Deus, na Cruz,
comprou, penando.
Sua morte foi avença,
dando, por dar-nos paraíso,
a sua vida
apreçada, sem detença,
por sentença,
julgada a paga em proviso,
e recebida.
A Sua mortal empresa
foi santa estalajadeira
Igreja Madre:
consolar à sua despesa,
nesta mesa,
qualquer alma caminheira,
com o Padre
e o Anjo Custódio aio.
Alma que lhe é encomendada,
se enfraquece
e lhe vai tomando raio
de desmaio,
se chegando a esta pousada,
se guarece.
Vem o Anjo Custódio, com a Alma, e diz:
ANJO Alma humana, formada
de nenhüa cousa feita,
mui preciosa,
de corrupção separada,
e esmaltada
naquela frágoa perfeita,
gloriosa!
Planta neste vale posta
pera dar celestes flores
olorosas,
e pera serdes tresposta
em a alta costa,
onde se criam primores
mais que rosas!
Planta sois e caminheira,
que ainda que estais, vos is
donde viestes.
Vossa pátria verdadeira
é ser herdei
da glória que conseguis:
andai prestes.
Alma bem-aventurada,
dos anjos tanto querida,
não durmais!
Um ponto não esteis parada,
que a jornada
muito em breve é fenecida,
se atentais.
ALMA Anjo que sois minha guarda,
olhai por minha fraqueza
terreal!
de toda a parte haja resguarda,
que não arda
a minha preciosa riqueza
principal.
Cercai-me sempre ò redor
porque vou mui temerosa
de contenda.
Ó precioso defensor
meu favor!
Vossa espada lumiosa
me defenda!
Tende sempre mão em mim,
porque hei medo de empeçar,
e de cair
ANJO Pera isso sam e a isso vim;
mas enfim,
cumpre-vos de me ajudar
a resistir
Não vos ocupem vaidades,
riquezas, nem seus debates.
Olhai por vós;
que pompas, honras, herdades
e vaidades,
são embates e combates
pera vós.
Vosso livre alvedrio,
isento, forro, poderoso
vos é dado
polo divinal poderio
e senhorio,
que possais fazer glorioso
vosso estado.
Deu-vos livre entendimento,
e vontade libertada
e a memória,
que tenhais em vosso tento
fundamento,
que sois por Ele criada
pera a glória.
E vendo Deus que o metal
em que vos pôs a estilar,
pera merecer,
que era muito fraco e mortal,
e, por tal,
me manda a vos ajudar
e defender.
Andemos a estrada nossa;
olhai: não torneis atrás,
que o imigo
à vossa vida gloriosa
porá grosa,
Não creiais a Satanás,
vosso perigo!
Continuai ter o cuidado
no fim de vossa jornada,
e a memória,
que o espírito atalaiado
do pecado
caminha sem temer nada
pera a Glória.
E nos laços infernais,
e nas redes de tristura
tenebrosas
da carreira, que passais,
não caiais:
siga vossa fermosura
as gloriosas.
Adianta-se o Anjo, e vem o Diabo a ela e diz:
DIABO Tão depressa, ó delicada,
alva pomba, pera onde isso?
Quem vos engana,
e vos leva tão cansada
por estrada,
que somente não sentis
se sois humana?
Não cureis de vos matar
que ainda estais em idade
de crecer
Tempo há i pera folgar
e caminhar
Vivei à vossa vontade
e havei prazer.
Gozai, gozai dos bens da terra,
Procurai por senhorios
e haveres.
Quem da vida vos desterra
à triste serra?
Quem vos fala em desvarios
por prazeres?
Esta vida é descanso,
doce e manso,
não cureis doutro paraíso.
Quem vos põe em vosso siso
outro remanso?
ALMA Não me detenhais aqui,
leixai-me ir que em al me fundo.
DIABO Oh! Descansai neste mundo
que todos fazem assi:
Não são em#balde os haveres.
não são em balde os deleites,
e fortunas;
não são debalde os prazeres
e comeres:
tudo são puros afeites
das criaturas:
Pera os homens se criaram.
Dai folga à vossa passagem
d'hoje a mais:
descansai, pois descansaram
os que passaram
por esta mesma romagem
que levais.
O que a vontade quiser
quanto o corpo desejar,
tudo se faça.
Zombai de quem vos quiser
reprender
querendo-vos marteirar
tão de graça.
Tornara-me, se a vós fora.
Is tão triste, atribulada,
que é tormenta.
Senhora, vós sois senhora
emperadora,
não deveis a ninguém nada.
Sede isenta.
ANJO Oh! andai; quem vos detém?
Como vindes pera a Glória
devagar!
Ó meu Deus! Ó sumo bem!
Já ninguém
não se preza da vitória
em se salvar!
Já cansais, alma preciosa?
Tão asinha desmaiais?
Sede esforçada!
Oh! Como viríeis trigosa
e desejosa,
se vísseis quanto ganhais
nesta jornada!
Caminhemos, caminhemos.
Esforçai ora, Alma santa,
esclarecida!
Adianta-se o Anjo, e torna Satanás:
DIABO Que vaidades e que extremos
tão supremos!
Pera que é essa pressa tanta?
tende vida.
Is muito desautorizada,
descalça, pobre, perdida,
de remate:
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