Alguns Poemas

A lenda de Pasárgada

 

Sempre procurei um lugar onde estivesse confortável, onde pudesse expressar minhas verdadeiras emoções. Desde criança, essa busca me acompanhava, uma sombra suave, mas persistente, guiando meus passos e moldando meus sonhos.

Lembro de passar horas deitado nos colchonetes da biblioteca do colégio, imaginando um mundo onde não precisasse esconder meus sentimentos. Lá, entre livros, mapas, barças e fotografias antigas, eu me sentia livre para ser quem realmente era, sem máscaras ou julgamentos. Era o início da minha jornada em busca de Pasárgada, aquele lugar utópico descrito por Manuel Bandeira, onde “sou amigo do rei” e “a existência é uma aventura”.

Na adolescência, esse anseio por um refúgio tornou-se ainda mais intenso. A escola, com suas regras e expectativas, parecia um labirinto de paredes cinzas e frias, sufocante e intransponível. Encontrava consolo nas palavras de Bandeira, que sussurravam promessas de um reino distante onde “lá sou amigo do rei” e “tudo é permitido”. Escondido em um canto da biblioteca, entre livros empoeirados e sonhos engavetados, eu vislumbrava Passárgada como um oásis de autenticidade e liberdade.

Os anos passaram e, como tantos outros, fui engolido pelo turbilhão da vida adulta. Trabalho, responsabilidades, contas a pagar. A busca por Passárgada tornou-se uma memória distante, uma lembrança nostálgica das minhas fantasias.

Então, um dia, percebi que Pasárgada não era apenas um lugar imaginário, e tampouco um lugar físico, mas um estado de espírito. Era a capacidade de encontrar pequenos refúgios no cotidiano, espaços onde poderia ser autêntico e vulnerável. Era a coragem de criar meu próprio mundo, onde minhas emoções pudessem fluir livremente.

Encontrei Pasárgada na música que tocava enquanto cozinhava, nas páginas de um diário onde derramava meus pensamentos mais íntimos, nos abraços sinceros dos amigos que realmente me conheciam. Encontrei Pasárgada no sorriso de um estranho que cruzava meu caminho, na simplicidade de uma tarde ensolarada no parque, no silêncio reconfortante das estrelas que cintilavam no céu noturno.

Hoje, continuo a procurar lugares onde me sinto confortável, onde posso expressar minhas verdadeiras emoções. E embora ainda sonhe com aquele reino idealizado por Bandeira, e entendi que eu sou Pasárgada.

Querido ladrão,

Querido ladrão,

 

Sabia que uma hora esse momento chegaria. Todo mundo tinha uma história de assalto para contar, menos eu. No fundo, sempre esperei por você, sempre ensaiei o que faria e o que diria, mas como as coisas nunca saem como planejamos, dessa vez não seria diferente.

Você apareceu, sabe-se lá de onde, me abordou tão rápido que nem consegui ver seu rosto ou me apresentar. Não precisava ter sido tão agressivo e confesso que fiquei frustrado por você não dizer as famosas frases cinematográficas do tipo: "Parado, isso é um assalto!" - fiquei chateado com tamanha falta de profissionalismo.

Desculpe ter lhe empurrado e saído correndo, eu não sabia o que fazer, já que você não respeitou o roteiro e, como sou péssimo em improviso, me assustei e corri, afinal você estava armado. Espero não ter te machucado, não sou uma pessoa que gosta de machucar os outros.

Quero te agradecer por me mostrar que não sou imune a esse tipo de situação e, além disso, agora não vou mais me sentir excluído nas rodas de amigos, quando todos estiverem falando de “seus ladrões”. Devido ter coisas pessoais no meu celular, já bloqueei o aparelho - não fique chateado! Só entenda que gosto de manter minha privacidade.

Se me roubou porque estava com fome, eu poderia ter comprado algo para você comer. Poderíamos até ter conversado - sou ótimo em ouvir os problemas dos outros. Caso sua fome fosse outra, eu poderia ter lhe entregue o livro do Rubem Braga que eu tinha na mochila, garanto que você ia adorar as crônicas dele. Em relação ao boné que você levou, já estava cansado dele, então considere como um presente. Já os cinquenta reais, use de forma inteligente, pois estamos em tempos de crise, então economize!

Por fim, quero que saiba que eu não estou com raiva de você (no começo até fiquei, mas passou). Você teve seus motivos. Pessoas tomam decisões ruins o tempo todo. Peço só que pare e reflita um pouco: até quando você vai levar essa vida? Acredito que as pessoas podem se tornar boas e se arrependerem de seus atos, pense um pouco nisso.

Obrigado pelo choque de realidade, você foi meu primeiro (e espero que único), jamais te esquecerei.

 

NPC de mercado


Gerson se sentia como um NPC, um personagem de jogos que só é ativado quando alguém chega perto, então ele automaticamente recitava o seu script sem nem pensar nas palavras. O balcão de atendimento era o seu mundo, e ali ele desempenhava o seu papel com precisão quase robótica de segunda a sábado. 

Pedro, entrou com seu gingado característico, Gerson já sabia que ele estava a caminho. Poderia identificá-lo até o corredor de laticínios, que era o sexto corredor na frente de seu balcão de atendimento. Já tinha testado isso várias vezes; após o sétimo corredor, ele já não sabia se era Pedro ou não, pois todos no mercado usavam o mesmo uniforme, máscara e rede nos cabelos, como exigia o protocolo.

Pedro entrou rapidinho, sem dar motivos para o supervisor notar sua presença. Ele sempre dava um jeito de parar no balcão de atendimento do Gerson para fazer uma gracinha. Chegava com um sorriso escondido sob a máscara, mas visível nos olhos.

— E aí big G? Como vai a vida de NPC? — perguntou Pedro, enquanto se escorava no balcão.

Gerson esboçou um sorriso que ele guardava só para Pedro

— Bem-vindo ao nosso balcão de atendimento, em que posso ajudar? — respondeu Gerson, em um tom exageradamente formal. — Ops, script errado! — 

— Palhacinho. — Pedro respondeu, dando um leve toque na mão de Gerson e fazendo seu coração disparar, Pedro estava tão próximo que dava pra sentir o calor do seu corpo e o cheiro do perfume cítrico que ele sempre usava.

— A mesma de sempre. Esperando os jogadores interagirem comigo — respondeu Gerson um pouco desconcertado.

Pedro riu, um som abafado pela máscara, mas que ainda assim aquecia o coração de Gerson.

— Um dia você vai sair desse jogo, GG. Vai ver só — disse Pedro, te encontro no intervalo daqui a dez minutinhos, piscando um olho e seguindo seu caminho antes que o supervisor notasse.

Gerson observou Pedro se afastar, seu perfume ainda estava no ar, o gingado característico desaparecendo na multidão de uniformes idênticos e clientes que perambulavam pelo mercado. 

TEMPO PARA AMAR


Cinco e quarenta

Minha boca está seca

Olho o relógio compulsivamente

Me forço a focar no que estou fazendo

Cinco e quarenta e cinco

Mordo meus lábios

Olho o relógio compulsivamente

Já parei de fazer o que deveria estar fazendo

Faço cálculos de quanto tempo estarei em casa

Aperto a caneta sem parar

 

Cinco 

cinquenta

 

Meu coração está disparado

A ansiedade está me consumindo

Mexo a perna no mesmo ritmo que aperto a caneta

Tomo um gole de água

 

Cinco e 

cinquenta e 

cinco

 

Não escuto mais meu coração

A agonia tomou conta de mim

Mexo a perna, os dedos, os pés em uma sinfonia doentia

Um sorriso escapa

Falta pouco

 

Cinco

 

cinquenta

 e 

oito

 

Tudo é breu

Silêncio

O tempo parou

Seis horas

Saio correndo

Não me despeço de ninguém

Segurando a mochila muito forte

Suor

Coração acelerado

Penso que vou entrar em colapso

Entro na condução

Uma eternidade dolorosa se arrasta

Tenho vontade de arrancar o motorista da direção

E acelerar até minha casa

Mas não sei dirigir

E o Sr. Antônio não tem culpa

Seis e vinte

Chego em casa

A porta demora pra abrir

Me sinto naquelas gincanas que o participante tem um molho de chaves e procura a chave correta que abre o cadeado, mesmo meu chaveiro tendo apenas uma chave

A porta abre

Corro pro meu quarto

Tropeçando em tudo

Jogo a mochila que bate em algo e quebra, mas não me importo

O computador já está ligado pra evitar mais demora

Entro no seu perfil

Torcendo pra que esteja lá

E está

Um lindo-radiante-maravilhoso-caloroso "Estou aqui"

Uma mensagem sua

Que esperei o dia inteiro

Que pareceu um ano

E agora nada mais importa

Nada mais existe

Só você em letras

Carta Aberta a Um Quase Amor


Acordei com a imagem do seu rosto ainda nítida na minha mente. Sonhei com você. Mas não tenho coragem de te contar. No sonho, você me convidava para ir ao cinema. Era um convite simples, mas carregado de uma ternura que eu ansiava experimentar no mundo acordado. Seria maravilhoso receber essa mensagem, ver seu nome brilhando na tela do meu celular. Tenho a sensação de que nos encontramos em momentos da vida que não se alinharam por um triz. Nossos caminhos se cruzaram, mas nunca conseguiram se entrelaçar completamente. Foi gostoso, carinhoso, cheio de tesão. Mas, na época, eu estava preso em raízes profundas dentro de mim.

Quando finalmente aparei essas raízes, você já não estava mais tão perto. Te vejo de longe agora, observando seu jeito de ser, admirando suas conquistas e seus gestos. Te quero de uma forma insistente dentro de mim.

Adoraria passar manhãs, tardes e noites com você, ouvindo sua voz grave e doce sussurrando no meu ouvido ao acordar. Tocar sua pele, sentir sua presença ao meu lado. Dormir de conchinha, como fizemos ao menos uma vez, é uma lembrança que guardo com carinho.

Mas as coisas mudam muito rápido. Acredito que você perdeu o interesse. Talvez eu tenha passado uma imagem de não ser verdadeiro, eu acho. Escondi que estava saindo de uma relação porque, para mim, já não estava. Era mais sobre afastar os corpos do que os corações.

Sonho acordado com você em alguns momentos, permitindo-me ser levado por fantasias que pintam um futuro em que estamos vivendo momentos juntos. Não que minha vida esteja parada por sua causa. Eu me relaciono com outras pessoas muito queridas, e até com um amigo seu — algo que juro ser obra do roteirista celestial. Quando te vejo nas redes sociais, o desejo ressurge. Te quero, mas você não me dá mais bola. Me chama de amigo e não retribui minhas investidas, nem responde às mensagens. É como se eu fosse invisível, uma sombra do que poderia ter sido.

Mas acho que mereço isso. As consequências das minhas ações e das minhas omissões. Te vejo de longe, e por enquanto, isso me basta. Aceito esse papel de espectador da sua vida, ainda nutrindo um carinho que talvez nunca morra completamente.

Foi uma quase relação, um quase amor. Algo que tinha todos os ingredientes para ser pleno, mas que nunca se concretizou. E assim, vivo com a lembrança do que quase foi, do que poderia ter sido. Um quase amor

Azulzinho


Hoje acordei azul. 

Sim, azul, 

azulzinho, 

azulão, 

A-Z-U-L. 

azul da cor do mar.

Foi um despertar normal

como todos os outros dias antes desse.

Levantei da cama

como faço todas as manhãs

como todos os dias antes desse

Dei uma looonga espreguiçada como faço

como todos os dias antes desse

e me encarei no espelho. 

como todos os dias antes desse

E lá estava eu, como sempre

como todos os dias antes desse

Mao ao contrário de todos os dias antes desse

Eu estava azul

Sim, azul!

Azulzinho!

Azulão!

A-Z-U-L!

azul da cor do mar!

um ser azul,

descabelado e nu

e azul em pelos

Por alguns instantes, fiquei parado, apenas me olhando. 

Pensei que ainda estivesse sonhando, preso em alguma fantasia surreal que minha mente perturbada produziu

Mas era realidade 

crua e azulada diante dos meus olhos

Comecei a me esfregar freneticamente, 

E nada acontecia

o azul permanecia ali, teimoso e vibrante, como se sempre estivera ali, impregnando minha pele.

Passei as mãos pelo rosto, pelo pescoço, pelos braços. Olhei minhas mãos, e elas também estavam envoltas de azul,

Fui ao banheiro, 

tomei um banho, mas o azul não saiu 

passei todos os shampoos, cremes, sabonete líquido e hidratante na pele, mas o azul não saiu

Escovei os dentes, mas o azul não saiu 

olhei no espelho, e lá estava eu, ainda azul. 

Depois de uma hora desisti de lutar contra isso e, ao invés de entrar em pânico

decidi aceitar o azul que me envolvia. 

Saí de casa, meio constrangido, meio curioso.

 As pessoas na rua olhavam, alguns disfarçadamente, outros sem pudor algum.

Eu sorria amarelo, ou melhor, azul. 

Eles me lançavam olhares confusos, alguns com um leve ar de preocupação. 

Uma senhora fez o sinal da cruz ao passar por mim.

As crianças riam ao me ver algumas corriam para longe

No trabalho, tentei agir naturalmente, como se ser azul fosse algo comum. 

Alguns colegas perguntaram se eu estava me sentindo bem. "Yes, Just a little blue Today.", respondi com um sorriso forçado. 

Todos ficaram mais confusos ainda.

Durante o dia, comecei a me acostumar com a ideia de ser azul. 

Era diferente, era estranho, mas também tinha seu charme.

À noite, ao me deitar na cama

ainda azul, 

falei comigo mesmo

Hoje acordei azul, talvez amanhã eu acorde verde, 

ou vermelho, quem sabe? 

Tudo muda

As coisas não duram para sempre. Soa até infantil falar isso. É claro que nada dura para sempre, mas a gente esquece ou finge esquecer. Pessoas, coisas, aquele bichinho de estimação, tudo tem um fim. Aquela tão esperada viagem, o final de semana de folga prolongada, o filme que você esperou ansioso para estrear, aquela roupa favorita, aquela comida gostosa que você preparou para comer com alguém especial, o trabalho chato, a dor de cabeça, o dinheiro, a falta de dinheiro, a dor nas costas, o relacionamento.

O tênis novo fica velho, a flor do vaso morre, a criança cresce, o celular dá pau, a tinta seca, o livro rasga, as folhas da árvore caem, a água evapora, a música acaba. Tudo muda, tudo sempre muda. Eu sei, você sabe, todo mundo sabe, mas como num pacto secreto, ninguém fala sobre isso. É estritamente proibido falar da morte, do fim, da separação, dos desencontros, da finitude. Não pode falar do azar, é tabu, como se não falando fosse alterar essa que é uma das maiores, senão a maior, verdade imutável de toda nossa existência. Tudo acaba, tudo muda, tudo morre. Tudo, todos.

E isso não necessariamente é ruim, não precisa ser triste. Tendo consciência de que tudo é impermanente, temos a oportunidade de aproveitar com intensidade os momentos: ouvir com atenção as pessoas, dizer como você se sente estando com a pessoa amada, degustar com calma a comida preparada por seu amor, escutar com atenção cada palavra daquela música favorita, captar cada detalhe da cena do filme, estar no presente, aqui e agora. Foda-se o depois. Não vai ter um depois em algum momento.

"Não deixe nada para depois, não deixe o tempo passar." 

O tempo passa. 

As coisas mudam. 

As pessoas mudam. 

As pessoas morrem. 

Eu, você, o seu cachorro, o seu Antônio motorista do ônibus, todo mundo vai deixar de existir em algum momento. 

Então, por que deixar de aproveitar o momento de agora? 

Até quando você vai ficar aí parado, hein?

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