Matilde Campilho

Matilde Campilho

Matilde Campilho é uma escritora portuguesa.

Lisboa
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Alguns Poemas

M

Porque tinha sal em minhas pestanas, porque existe um salmão dourado onde o amor sempre dança, porque a ideia de ir até o mar de metrô era a oração que nos fazia ficar acordados até de manhã, porque há um osso se estilhaçando constantemente dentro das paredes mestras e nós já sabíamos isso, porque a paixão não é de todo a coisa mais importante mas é sim o canudinho através do qual dá para ver que o mundo é muito feito de construções de papel — celulose que vem da árvore e que depois se transforma em lista telefônica de onde alguém arranca a página e logo transforma em veleiros e montanhas. Talvez porque na porta do restaurante habitual alguém toca clarinete ao sol, porque até as ruínas podemos amar nesta cidade, porque eu tenho um olho em você e você tem um dedo em mim, porque para chegar no telhado do aqueduto é preciso percorrer a estreita escadaria de pedra e é impossível não esfregar as costas nas paredes úmidas. Porque atingir o ponto de rebuçado significa simplesmente abandonar todas as coisas e dedicar-se só à concentração, mesmo que todas as coisas sejam um olho preto e um olho castanho e sua dissociação seja a possível causa para a avalanche. Porque a palavra Bushboy não existia até aqui mas agora sim, porque fazer equilibrismo sobre a corda amarela dentro do apartamento é tudo o que já imaginávamos que ia ser, mesmo antes de acontecer. Porque no interior do pulmão do cervo tem a carne que brilha, brilha tanto como o sol que se espelha na ponta da seta. Porque acreditamos, você e eu, que a razão final é que a erva cresça muito acima de nossas cabeças.

Dia de São Tomé

Poderia escrever o teu nome
70 vezes seguidas
Mas isso não espantaria
a saudade que sinto
de dizer o teu nome
entre sal e dentes
Isso em nada iria melhorar
a falta que faz o teu corpo
dentro da sombra invisível
que diariamente se senta
a meu lado no restaurante
às 11 da manhã
Ou no lugar direito do automóvel
quando dirijo até a repartição
política das finanças do estado
O tal Estado escavacado
e tão sobrevalorizado
Escrever o teu nome
repetidamente
primeiro em linhas verticais
depois horizontais
e mais tarde transversais
Como quem espera algum dia ser o vencedor
do Four in a Row
de forma alguma substitui
o ruído aquático que sucedia
no interior de minha boca
quando a palavra Tu
reverberava entre palato
e água do mar
Batia em meus dentes
e ia parar no furo de alguma rocha
Sim o teu nome
entre um mergulho e outro
O teu nome engasgado
de pirolitos e gargalhadas
O teu nome
batendo em tua cara
exatamente ao mesmo tempo
que o feixe de sol
das 5:28 da tarde
O teu nome
roubado uma vez e outra
por nosso fiel pelicano
O nome do ministro
demissionário
é tão fácil de dizer
Desculpem se não digo
As linhas que cosem
partidos políticos
são tão fáceis de enfiar
no joguinho das crianças
E que simples é o resultado
Muito mais simples
que o resultado
de nosso velho marcador
Com partido político
dá sempre zero a zero
a vantagem do serviço
Com partido alto
dá sempre dez a dez
e vantagem do amor
Você levou meu samba
e meu mensageiro
Você deixou os sapatos
a sombra desalojada
e um dialeto muito novo
que devo utilizar agora
para não dizer teu nome
entre rajadas de revolução
e goles de cerveja junina
Um dialeto umas vezes digno
e outras vezes não
que entrego agora
ao bico do pelicano eterno:
Vai pássaro, leva meu grão
até as escadinhas do santo
que hoje celebra seu nome
entre os doze favoritos.

A Primeira Hora Em Que o Filho do Sol Brincou Com Chumbinhos

Meu querido, as árvores falam. Os tigres correm olimpíadas em pistas muito mais incríveis do que aquelas feitas de cimento laranja. Usain Bolt vezes vem, o sorriso de Usain Bolt vezes mil. A matemática não é difícil se você comparar tudo ao aparecimento de um cardume. Alguns frutos nascem no chão, outros caem nos ramos. É preciso estar atento. Certas canções despertam em nós a vontade de uma história que já aconteceu mas que não vai acontecer mais. Algumas histórias têm a duração exata de uma música rock, outras se dividem em cantos. No intervalo dá para comprar pipocas. Poucas pessoas contaram as riscas de uma zebra, mas todos os que o fizeram regressaram diferentes. O alvo de um humano está no terceiro olho e um dia alguém vai explicar para você como afagar ele e onde ele fica. Nunca aponte ao terceiro olho, como aquilo é só cuidados. Algumas vezes vão te empurrar e você vai empurrar de volta, provavelmente vai até querer pegar uma pedra para jogar no peito de quem te feriu. Isso não está certo, mas é humano. Quase tudo o que é humano é justo, não deixe que ninguém te diga o contrário — só não vale enfiar o dedo no tal olho porque isso é igual a matar. A morte é o contrário da justiça. Os peixes respiram debaixo de água e se você mergulhar entre as rochas e se concentrar muito também vai conseguir. Ah é: os peixes brilham mais do que as chamas, e alguns deles vão morar dentro de seus pulmões. Segure-se. Faça por polir seu riso, principalmente ao entardecer. Afine diariamente a pontaria e reze para que nunca seja necessário o disparo. Não existe proteção melhor do que a consciência de que podemos decidir atirar ao lado. Sim, daqui a muitos anos você vai conseguir acertar direitinho nessa lata de coca-cola que a gente suspendeu no sobreiro. Só acho que que não vai querer. Também vai saber por que razão é melhor segurar uma arma descalço — é que é na terra que está a consciência do mundo, e é preciso escutar o seu ruído para agir em verdade. Saiba também, querido, que muitas vezes a sombra de um desenho é bem mais bonita do que o desenho que está à vista. É preciso estar atento, e descobrir o bichinho que se mexe debaixo da folhagem. Não o mate: se cubra de flores e entre para brincar com ele.

O Amor Faz-Me Fome

Tropecei numa ementa de vendas de comida ready-made
E por uma dessas fatalidades que vêm encadernadas
em vouchers de correio ou publicidade não endereçada
Fui reparar que agora tu e a tua miúda fazem
cafés da manhã para entregar ao domicílio
Perdão queria dizer pequenos-almoços
deixemos o café e as manhãs para outras dinastias
No meu tempo eu era o príncipe e tu a imagem
mais pura do menino Jean-Nicolas-Arthur Rimbuad
Dois saltimbancos cruzando a cidade e os dias
Também cruzávamos os dedos mas isso agora não importa
dois rapazolas roubando meio croissant e três goles de suco
às mesas impecavelmente postas dos hotéis mais bonitos da cidade
A comida não era de todo o que mais nos interessava
se pensarmos que a paixão alucinante era rastilho suficiente
para rebentar-nos o estômago até ao nível da alegria
Havia sempre alguém disposto a pagar-nos refeições
assim como nós estávamos sempre prontos a pular o fogo mágico
Acostumámo-nos desde muito cedo a sair das celebrações
de joelhos chamuscados e com as roupas mais ou menos rasgadas
Isso era motivo suficiente para que um de nós pegasse a moto
e então os dois acelerávamos até à praia mais deserta do país
Nem por isso deixámos de nos escapar aos acontecimentos
mas aqueles foram indubitavelmente os mergulhos de ouro
Agora as fogueiras levantam-se muito mais altas do que as magias
às quais dedicámos quase toda a nossa juventude igualitária
Hoje temos mais de trinta anos e da minha janela dá para ver
os disparos dos incontáveis snipers das barricadas de Kiev
Desta varanda podem ouvir-se os gritos das ruas venezuelanas
se sobrepondo ao viejo papá que só quer dizer pásame el pan
Daqui dá para cheirar a ameaça de pólvora semi-invisível saindo
do documento que declara o estado de exceção no sul da Bahia
Parece que a primavera do mundo é um trabalho em progresso
mas o caminho até lá está sendo todo feito entre as veredas
e entre os galhos de fogo de um gigante inverno
No nosso tempo eu acreditava muito nas notícias e na televisão
Hoje eu acredito tudo nas experiências que me contam os homens
Ontem éramos os filhos dos netos da revolução
E explicaram-nos que a tabuada e a paixão alucinante eram tudo
o que precisávamos e precisaríamos para o exercício da construção
Hoje somos pais de algumas crianças e pais de nós mesmos
e já vamos sabendo algumas coisas sobre a palavra desconstrução
O amor ainda é o estandarte onde vamos pendurando as bandeiras
A coragem ainda é o ferro onde vamos pendurando as roupas
Sim ainda rasgamos nossas roupas Sim ainda esfolamos os joelhos
Mas agora é tudo em nome de uma certa mudança universal
Onde andarás tu e teu sonho nesta manhã eu já não sei
Muito menos que espécie de alimentos entregas ao domicílio
Seja como for o amor ainda me faz bastante fome
e o relento ainda me parece o asfalto justo para toda a revolução
Portanto (apesar dos vouchers) hoje meu miúdo e eu escolhemos
tomar um café da manhã na rua e deixar para lá o domicílio.

Dia Dez

É que por você eu dirigia o meu automóvel de uma forma muito estapafúrdia. Meus pais sempre discutiam comigo porque não chegava à hora de jantar. O garoto da loja de sorvetes piscava-me o olho quando eu chegava sozinha no balcão. Ele já sabia que você dobraria a próxima esquina. Por você eu ficava sempre brigando com os pássaros, queria assobiar muito mais alto do que eles e isso não é nada esperto.Quem briga com bicho, perde.
Por você eu também fui descobrir aquele projeto de mamífero emadeirado que ficava no ponto mais alto da aldeia e por causa disso eu soube que a luz incide de uma forma muito maravilhosa no rosto de dona Manu. É que dona Manu ficava lá sentada comigo todas as tardes, do lado da estrutura. Era eu, dona Manu e a baleia.
Todas as tardes de verão em Lisboa. Não sei se te disse, mas durante os nossos dias, fez sempre verão em Lisboa. Não sei se você reparou, mas sei que todos os marinheiros da vila ao lado repararam. Lembra quando subimos no barco para comer churrasco? Acho que esse foi o fim de tarde mais lindo do mundo,
como quase todos os todos os dias do mundo, foram os mais maravilhoso com você.
Às vezes, ainda acho que vivo num filme que é tudo uma cinematografia um pouco estapafúrdia. Um filme, um filme em que não disseste sim. Um filme em que escolheste outro tipo de disparos. O filme em que julgaste que a minha velocidade era a coisa mais idiota da galáxia.
Sim, eu pegaria um avião só para te beijar no dia dos teus anos. Sim, eu já te tinha dito. Era capaz de atravessar a cidade em bicicleta, só para te ver dançar. E não se iluda, nunca mais se iluda. Eu não sou herói, nada de campeonatos. Nunca atravessei nenhuma das chuvas para te provar coisa alguma. Tudo o que atravessei, toda aquela rapidez que te levava do claro ao escuro em 43 segundos, era só porque… desculpa…mas eu sempre achei que eras a pessoa mais bonita do mundo. Sempre achei que a tua presença a meu lado era quase imerecível.
Não acho que sejas a Gisele Bündchen, não acho que sejas o Brad Pitt, não acho que sejas o menino Arthur Rimbaud, não acho que tu sejas o conta-km de um Austen Martin na estrada de Kathmandu.
Acho que tu, és o teu mundo. Teus olhos castanhos, teu cabelo claro, tua voz às vezes grave, às vezes doce. Tua incrível mirada sobre o mundos dos negócios e tua bendita sensibilidade para a natureza: una, espiritual, familiar de todas as coisas.
Desculpa gostar tanto de ti…Desculpa já nem sequer te inventar. Eu sei que o teu rosto é o teu rosto e isso ainda é muito equiparável à estabilidade de uma girafa, sobre os 30 pratos na fazenda. Acho que foi por ti que Santo Anselmo cuspiu flores. Tu, o teu nome, a alegria no mundo. Acho que o teu amor, que nasce e morre e nasce e morre e ressuscita e, assim, se alastra é a maior de todas as bênçãos possíveis no peito de um anjo roxo.
Perdoa este excesso de paixão, talvez para ti seja meio difícil, mas eu prometi sempre dizer a verdade. Toda a gente sabe quem tu és para mim. E você, e para você, os meus parabéns por 30 anos de Terra. Pela parte que me toca,
obrigada pelos 20… foi, ainda é, uma aventura tremenda. Um abraço forte.

Rio de Janeiro — Lisboa

um dia você
adora meus óculos
adoro os teus óculos
no dia seguinte
não quero que venhas na fazenda
três dias antes
você ia adorar este lugar
você quer vir até à fazenda?
um dia eu rasgo
o tecido celular do rosto
realizo um sorriso constante
que atravessa o morro
o ponto mágico do morro
rasgão alegre que fulmina
o veio mínimo da folha
de amendoeira
e pelo feixe de luz tropiquente
vai parar na cara de João
vendedor de suco no leblon
em ricochete João grita açaí!
qualquer dia eu vou e chego

no outro dia
a cidade se aborrece
desdignificada pela
gigante roleta
que se chama medo
o urubu fica empoleirado
na trave enferrujada
daquilo que já foi suporte
ao cartaz que anunciava
o novo mundo das piscinas

fosforescentes
o pássaro suspenso
olhando a via rápida
e catando caca
debaixo da unha
temendo o gira girar
da pequena roda
que circula sorte e azar

um dia você
escreve para seus pais
falando sobre o amor
quarenta dias depois
teus pais te escrevem
falando sobre redes de pesca
e o perigo das redes de pesca
um dia você me envia uma carta
depois a outra
o rasgão explode
recordando ainda outra carta
de alguns meses antes
o postal eterno que dizia
still crazy (after all
these years)
faço voto de silêncio
mas na sacralização
horária das avenidas
eu penso que você
sua mãe e seu pai
conversam muito
sobre peixes
e que isso mantém quieta
a roleta negra
e que isso mantém aparada
a unha do urubu
e que isso faz homenagem
a João e à fruta espessa
que brilha vermelha
em cada copo de minha cidade

um dia você diz que me a****
eu a****-te
no dia seguinte
a amendoeira se expande
e floresce cinco folhas mais
nesse dia reparo
que estamos contribuindo
você e eu
para o florestamento da cidade
de duas cidades
faço voto de silêncio
mas na sacralização horária
da respiração eu penso
que apesar da sala de casino
abrigo da gigante roleta do medo
apesar dos golpes de gmt -3
apesar da fita de seda que fica
ondulando sua medida de 7 800 km
estamos dando utilidade ao amor
alargando os braços das amendoeiras
alargando os braços dos jacarandás
partindo as inúteis linhas de fronteira
e fazendo do mundo
a gigante floresta

31 de Outubro

No rádio do posto de gasolina, tocou uma canção que falava de Prometeu. Do estoicismo de Prometeu. Tanto quanto sei, nas últimas aulas de história e geografia, Prometeu foi quase o deus que mais acreditou na humanidade. Quase. Há outro. Mas P, aquele malandro, roubou o fogo do chefão para levá-lo aos mortais. Por causa disso foi amarrado à uma rocha por toda eternidade. Ha lá, agora não é hora para falar de castigos, muito menos de castigos que envolvam abraços aos rochedos. Íamos ficar horas discutindo arbitragem e as diferentes tonalidades de um cartão vermelho. Quem acredita num castigo, também acredita na chegada das setenta alegrias. Alguns acham isso, outros não. Hoje não é dia pra isso. Estoicismo. Hoje é a tarde em que noventa e dois corpos foram achados no deserto. Silêncio. Entre o Nigér e a Algéria vão tantos quilômetros de distância, deus. Hoje era aniversário do Dummond. Tinha aquele poema sobre a chuva e sobre o nome que toda mulher leva cozido no veludo, principalmente eu. Tinha aquele poema sobre o bonde que não veio, aquele poema sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas e, mais do que tudo, aquele, o amor. Carlos, você é telúrico. A noite passando em você e os recalques se sublimando. Lá dentro um barulho inefável: rezas, vitrolas, santos que se persignam. Anúncios do melhor sabão, um barulho que ninguém sabe de que, o quê. Você é a palmeira. Você é o grito que ninguém ouviu no teatro. Hoje é o dia que o terremoto atingiu Taiwan. Seis ponto seis, sabe-se lá em que escala. Sabe-se lá quantos fogos, quantas ondas de quarenta metros, quantos alicerces dobrados como se dobram as pernas dos grilos no outono norueguês. Em português não lhe chamamos Taiwan, sempre lhe chamamos Ilha Formosa. Faz parte dos quatro tigres asiáticos e, por falar nisso, acho que é sempre tempo de falar nisso, uma vez conheci um santo que não parava de repetir o mantra: “I never saw so many tigers”. Claro que isso não aconteceu no elevador de um hotel na Flórida, mas por causa dos movimentos das placas tectônicas, o mundo cada dia se aproxima mais do mundo. Só falta o verão aproximar-se mais do verão. Diabos. Faz um frio danado outra vez. O Lou Reed morreu essa semana. Naquele último retrato em branco e negro, ele tinha o punho todo cerrado, cabelo todo desalinhado, as orelhas como sempre do tamanho de um planeta. Acho que há um time qualquer se formando para além de nós. Um time de reis e profetas de orelhas grandes jogando as bolas por cima de nossas cabeças. Laurie Anderson, a mulher de Lou, escreveu uma nota para a secção de obituários de um pequeno jornal a serviço da comunidade de East Hampton. Que outono mais bonito, foi assim que ela começou. Que outono mais bonito e tudo brilha e aquela incrível luz suave. Desculpe o meu inglês, mas “Lou was a Tai-Chi master and spent his last days here, being happy and dazzled by the beauty and power and softness of nature.” Um príncipe, foi o que ela lhe chamou, um príncipe e um boxeur. Prometeu regenerava-se durante a noite, rosto encostado na umidade do rochedo, estômago aberto pelos pássaros. É assim que um deus faz um homem, é assim que deus faz valente. Os Red Socks ganharam o campeonato. 6 a 1. Mas ainda me falta saber tanta coisa sobre o baseball. Sei de um dono de bar que está disposto a explicar tudo. Até lá guardo a imagem daquele bastão sendo lançado até a arquibancada e caindo aos pés de um homem que chorou. Sempre achei que os Red Socks eram uma espécie de Botafogo norte-americano, portanto vai alegria. A Índia está no caminho para Marte. No próximo dia 5 é lançada a nave espacial que vai abrir as hostes àquela que é a primeira missão interplanetária indiana. Eles esperam que o bicho entre arrastando fogo até o planeta vermelho lá para setembro do ano que vem. Eu espero que o bicho leve no bolso o recadinho do Ray Bradbury dobrado em quatro partes, aquela onde ele explica assim: “É bom renovar o espanto da gente, disse o filósofo. As viagens no espaço fizeram-nos a todos, de novo, crianças.” Em Maputo, como se isto no mundo fosse um castelo de cartas que afinal só quer cair na paz, aconteceu aquela que já chamam a maior manifestação não-governamental do que há memória. Na ilha formosa a temperatura agora é de, exatamente, 24 graus. O Carlos se fosse vivo fazia 111 anos. Obrigada homem, obrigada. “O amor é isto que você está vendo”.

Época da Colheita de Lã

Faz hoje um ano e meio que inundaram o canal de Danesdale para dar passagem à procissão dos castores. Ainda estou sem saber como é que se faz um poema mas pelo menos já sei dobrar a roupa. Tenho-me recusado a falar sobre aquelas coisas habituais, como o coração de Deus, a corrida dos gaiatos, a visão macroscópica que incide sobre a dobra dos calções do atleta, o cílio do peixe preto que todos os dias roça o peito do mergulhador das manhãs, o resultado da partida de baseball no Connecticut ou a forma mais correcta de escrever baseball. Acho que o esporte é uma coisa reconfortante porque se realiza sempre sobre um solo fértil e também porque o posso abandonar a qualquer instante ou voltar a ele em qualquer instante. Fred ainda está vivo, ainda limpa o balcão do bar com o pano encardido e sei que sempre que regressar à cidade posso entrar no bar, sentar-me ao balcão e perguntar-lhe sobre a performance de Hank Aaron. Fred sabe tudo sobre o voo. Descobri inúmeros elementos transformadores da vontade, mas também não vou distender-me aqui em palavrões ou frases demasiado compostas só para encontrar um sentido no decorrer da sentença. O melhor pianista do país morreu esta tarde e tinha os cabelos iluminados de fogo. Sônia diz que ele fazia lembrar erupções de querubins no asfalto, Eric não para de chorar. A amendoeira do canal foi rasgada a canivete mas o desenho gravado não é de todo a tatuagem mais feia do mundo. Etc. Etc. Etc.
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