Matilde Campilho

Matilde Campilho

Matilde Campilho é uma escritora portuguesa.

Lisboa
12763
1
29


Alguns Poemas

Principado Extinto

Isto é um poema
fala de amor
ou do medo do amor
Fala da morte
ou do fim da amálgama
rosto voz alma e cheiro
que é a morte
Isto é um poema
tenha medo
Fala dos peregrinos
que atravessam avenidas
de sobretudo e óculos
carregando flores invisíveis
e chorando mudos
Isto aqui é um poema
fala da permanência inútil
de um coração devastado
de uma floresta devastada
de uma corrida devastada
logo depois do disparo
da arma de 40 peças
que soltou a bandeirinha
e assim mesmo se desfez
Isto é um poema
fala da aparição do inverno
fala da fuga dos albatrozes

fala do punhal sobre a mesa
e do absurdo do punhal
feito de madeira e pedra
sobre a mesa do jantar
Fala do poder da erosão
que afinal incide sobre
pele e nervo e osso e olho
Fala do desaparecimento
Fala do desaparecimento
Claro que é um poema
fala do toque de saída
no colégio de Île de France
e das 39 saias das meninas
esvoaçando sem vontade
na direção do cais de ferro
Fala do pânico do corpo
que esbarra em si mesmo
no espelho pela manhã
e do urro silencioso
que nenhum vizinho
escuta mas que ainda
assim reverbera sem dó
até a hora final
fala do vômito que advém
dos gestos repetidos

prolongados assim ad astra
até que o sono apague tudo
Fala da palavra saudade
ou da palavra terremoto
fala do olho que tudo via
deixando lentamente de ver
até mesmo a cara de Jack Steam
o porteiro da loja de discos
onde toca a canção de Chavela
Nada mais no mundo importa
Isto é que é poema
Fala do cheiro das flores
e da injustiça da existência
das flores na cidade
Fala da dor excruciante
meu bem excruciante
que faz até desejar
o fim do poema
o fim da palavra amor
que após o disparo
se espelha apenas
na palavra loucura.

Dia de São Tomé

Poderia escrever o teu nome
70 vezes seguidas
Mas isso não espantaria
a saudade que sinto
de dizer o teu nome
entre sal e dentes
Isso em nada iria melhorar
a falta que faz o teu corpo
dentro da sombra invisível
que diariamente se senta
a meu lado no restaurante
às 11 da manhã
Ou no lugar direito do automóvel
quando dirijo até a repartição
política das finanças do estado
O tal Estado escavacado
e tão sobrevalorizado
Escrever o teu nome
repetidamente
primeiro em linhas verticais
depois horizontais
e mais tarde transversais
Como quem espera algum dia ser o vencedor
do Four in a Row
de forma alguma substitui
o ruído aquático que sucedia
no interior de minha boca
quando a palavra Tu
reverberava entre palato
e água do mar
Batia em meus dentes
e ia parar no furo de alguma rocha
Sim o teu nome
entre um mergulho e outro
O teu nome engasgado
de pirolitos e gargalhadas
O teu nome
batendo em tua cara
exatamente ao mesmo tempo
que o feixe de sol
das 5:28 da tarde
O teu nome
roubado uma vez e outra
por nosso fiel pelicano
O nome do ministro
demissionário
é tão fácil de dizer
Desculpem se não digo
As linhas que cosem
partidos políticos
são tão fáceis de enfiar
no joguinho das crianças
E que simples é o resultado
Muito mais simples
que o resultado
de nosso velho marcador
Com partido político
dá sempre zero a zero
a vantagem do serviço
Com partido alto
dá sempre dez a dez
e vantagem do amor
Você levou meu samba
e meu mensageiro
Você deixou os sapatos
a sombra desalojada
e um dialeto muito novo
que devo utilizar agora
para não dizer teu nome
entre rajadas de revolução
e goles de cerveja junina
Um dialeto umas vezes digno
e outras vezes não
que entrego agora
ao bico do pelicano eterno:
Vai pássaro, leva meu grão
até as escadinhas do santo
que hoje celebra seu nome
entre os doze favoritos.

Briga Entre Um Terreno Sagrado E Outro

Perdi muito tempo pensando
sobre se você iria para o céu
ou para o inferno
Achava que com tanta gente
ferida por seu punhal
havia uma possibilidade
Sim uma possibilidade
de que você fosse parar
no inferno
Mas depois também tinha
aquela coisa de você nadando
na Praia da Amoreira
ou de você desenhando
com uma pedrinha branca
na pele do rochedo irregular
ou até de você aparecendo
sorrindo na minha frente
Tinha a forma como você
conversava com estranhos
na rua à hora dos lobos
Seu jeito de segurar a raqueta
quando jogava badminton
Aquela sua atrapalhação
quando você se atrasava
Você sempre se atrasava
e chegava correndo
se justificando
olhando o relógio
que você nem tinha
Você toda afogueada
subindo no banco de trás
de minha bicicleta
enquanto eu continuava
lendo o jornal internacional
calmamente
sempre calmamente
te esperando

Você dizia des-des-desculpa
eu lia a última parte da notícia
que falava de um barco
encalhado na Mesoamérica
e depois te dizia vamos?
Havia a possibilidade
é havia uma forte possibilidade
de que você terminasse no céu
ou no paraíso
O tempo que você levava
para se despertar
nas manhãs de dezembro
A atenção que você dedicava
a todas as partes de seu corpo
e de meu corpo
e do corpo do raminho
de magnólias
que adormeciam
e acordavam connosco
no hotel mais sujo da cidade
em dezembro e fevereiro
Isso dizia muito sobre
sua vocação para a meditação
e também para o desespero
Passei muito tempo pensando
sobre se tua inclinação
te levaria até o inferno
pouco depois de tua morte
E mais do que isso
eu também pensava
se você morrer eu morro
se você escolher o gole do diabo
eu bebo do mesmo cantil
Foi assim que me tornei ladrão
Assim que apontei o canivete
na têmpora de Xavier Tementree
Assim que assaltei a horta biológica
para levar todos os pés da salsa dourada

Foi assim que esbofeteei o policial
e pior que isso foi assim que esmurrei
meu colega samurai
quando eu sabia que ele fazia aquilo
só por diversão ou por imitação
Passei muito tempo pensando
num lado e no outro
E portanto nos intervalos do terror
para cobrir minha retaguarda
Eu dançava na quermesse
Alimentava os castores
Contava as línguas das tribos
Fazia vénias aos astrofísicos
Beijava todas as cabeças
dos pássaros e dos lampiões
Não fosse deus tecer a manta
e fazer-te escolher a água benta.

Para onde você vai eu não sei
Na verdade não me importa mais
Porque no caminho do post-mortem
Aconteceu que dei de caras com a vida.

Época da Colheita de Lã

Faz hoje um ano e meio que inundaram o canal de Danesdale para dar passagem à procissão dos castores. Ainda estou sem saber como é que se faz um poema mas pelo menos já sei dobrar a roupa. Tenho-me recusado a falar sobre aquelas coisas habituais, como o coração de Deus, a corrida dos gaiatos, a visão macroscópica que incide sobre a dobra dos calções do atleta, o cílio do peixe preto que todos os dias roça o peito do mergulhador das manhãs, o resultado da partida de baseball no Connecticut ou a forma mais correcta de escrever baseball. Acho que o esporte é uma coisa reconfortante porque se realiza sempre sobre um solo fértil e também porque o posso abandonar a qualquer instante ou voltar a ele em qualquer instante. Fred ainda está vivo, ainda limpa o balcão do bar com o pano encardido e sei que sempre que regressar à cidade posso entrar no bar, sentar-me ao balcão e perguntar-lhe sobre a performance de Hank Aaron. Fred sabe tudo sobre o voo. Descobri inúmeros elementos transformadores da vontade, mas também não vou distender-me aqui em palavrões ou frases demasiado compostas só para encontrar um sentido no decorrer da sentença. O melhor pianista do país morreu esta tarde e tinha os cabelos iluminados de fogo. Sônia diz que ele fazia lembrar erupções de querubins no asfalto, Eric não para de chorar. A amendoeira do canal foi rasgada a canivete mas o desenho gravado não é de todo a tatuagem mais feia do mundo. Etc. Etc. Etc.

Veleiro

Bem: as palmeiras brilham mais que o ouro. Walter Benjamin tinha razão sobre os círculos — quanto mais se roda em volta do amor, mais o amor se expande. A filosofia é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo. Bem, quatrocentos anos depois e você & eu ainda somos uma espécie de Ferris Bueller’s Day Off. Ó, você viu os coros dos meninos na avenida? A alegria é um carro de bombeiros todo enfeitado de penas e cavalos bravos, atravessando tudo. A liberdade se faz inteira debaixo da palavra, entre um músico Tang e um jarro de Oaxaca. Os continentes se aproximam docemente e, como você me explicou, o selvagem europeu ainda vai soltar seu esplendor. Acredito muito naquilo que ninguém mais espera, principalmente depois que dei de caras com o dorso da baleia solitária. Todo canto tem um tom, e a maioria dos mamíferos se agrupam pelo reconhecimento de uma musicalidade comum. Sim, o fadista vai escolher o fadista, e as manadas de baleia costumam espalhar seu sopro de cerca de 20 hertz por oceanos infinitos. Em comunhão. Mas imagine você que em 1989 alguém descobriu uma baleia que canta solitária e a 52 hertz — sem primos, sem irmãos, sem melhor amigo, sem ilha onde fazer um pit stop. Ninguém vocaliza sua frequência, ouvido nenhum escuta seus 52 pontos. Há milagres. Depois do surgimento da baleia solitária, depois dos círculos de Benjamin, depois do desdobramento do poema XIX, depois do berlinde de Seymour Glass sendo girado no dedo do jogador de basquete, me diga, como não acreditar no brilho natural que diariamente resplandece no peito da terra? Bem, seu rosto de espanto frente ao sorvete de morango numa tarde de domingo é a manobra que puxa o lustro à pele do planeta. Benzinho, estamos invertendo a poesia de Eliot. Estamos curando o resfriado de Madame Sosostris, e esta coisa da alegria ainda vai dar muito certo. Seja como for, dê por onde der, seguimos usando o colar de pérolas que é feito dos olhos do marinheiro fenício. No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo: ninguém mais se afogará.

We Never Did Too Much Talking Anyway

Por exemplo
esqueça Coney Island
e as trezentas peças
de metal que compõem
o jogo mágico de Coney
Island no mês de agosto
Lembre da palavra sushi
sendo gritada no metrô
quando tudo o que alguém
queria gritar era sua devoção
por pedacinhos de prata
Lembre de meu fascínio
profundo por desportistas
noturnos que sincronizam
a respiração com o batimento
dos dedos da amante morta
Esqueça o comprimido
composto de estearato
de magnésio e macrogol
receitado por doutor Roberto
quando o pobre doutor Roberto
não sabia mais o que tentar
ou então tinha mais o que fazer
naquela tarde de quarta-feira
na emergência de São Vicente
Lembre que quarta-feira
é dia de jogo de pebolim
e sobre isso não tem discussão
Lembre do quanto me iluminam
os animais talhados no marfim
principalmente aquela baleia
de oito centímetros e meio
minha única herança
minha única esperança
Esqueça talvez
a manobra repetida
de lamber envelopes
no silêncio de um quarto
quando já faz sol nas praças
Somos feitos para o relento
Lembre que por vezes
você tem muita razão
e que outras vezes não
Esqueça vá esqueça
o inverno em Ipanema
e o tubarão nadando
nas veias da besta
de Ipanema gelada
Lembre de meu desejo
muitas vezes certo
muitas vezes não
Lembre a descoberta
daquele excerto que dizia
nós subimos os degraus
a correr e saímos do frio
brilhante para o frio escuro
E se puder não esqueça
o rosto calmo do tigre
que está parado na porta
esperando para entrar
e para depois nos atravessar.
MATILDE CAMPILHO (Sangue Latino)
Fevereiro - Matilde Campilho LEGENDADO
MATILDE CAMPILHO, PARA O MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA
(dia dez - matilde campilho)
amores serenos - Matilde Campilho
Dia dez - Matilde Campilho
Matilde Campilho - Isso diz muito sobre o meu coração ❤
(fevereiro - matilde campilho)
Ler Olhos Nos Olhos - Matilde Campilho - 17.06.2021
Amor que serena, termina? #canalbrasil #matildecampilho #amor #juangelman
31 de outubro - matilde campilho
Duelo de poesia entre Gregorio Duvivier e Matilde Campilho
Conversa de Fim de Tarde Depois de Três Anos no Exílio - Matilde Campilho
Matilde Campilho
Sangue Latino - Matilde Campilho
We've changed, honey boo - matilde campilho
Matilde Campilho no programa Sangue Latino.
Metrópolis: Matilde Campilho
Carolina Catalani | Briga Entre Um Terreno Sagrado e Outro | Matilde Campilho
Matilde Campilho - "Flecha"
Saudade - Matilde Campilho 💬
Matilde Campilho: Uma conversa italiana
Matilde Campilho em poesia com Gregorio Duvivier
Conversas Confinadas (2.ª edição) | Matilde Campilho
Matilde Campilho : o erro é construção
"O que é o silêncio? I Matilde Campilho 💬
Entrevista a Matilde Campilho
Bárbara Victória | Fevereiro | Matilde Campilho
Fevereiro - Matilde Campilho (expressão corporal)
Fernanda Montenegro lê "A Pequena Morte", de Eduardo Galeano
imaginação - Matilde Campilho
FUR Matilde Campilho
não é cair é voar com estilo - matilde campilho.
MATILDE CAMPILHO (O universo visto pelo buraco da fechadura)
"O Brasil são mil ideias"
SILENCE
matilde campilho. vídeo poesia. s. lp ||.
Poeme-se: Talita Castro declama Matilde Campilho
Jóquei - Matilde Campilho
Leitura de Matilde Campilho no RHI
Eça de Queirós de Matilde Campilho em Minha Língua, Minha Pátria
📖 Jóquei - Matilde Campilho | LEITURA OBRIGATÓRIA
CHAPÉU DE PALHA - Matilde Campilho | Por WPS
LEV - Literatura em Viagem com Matilde Campilho
Matilde Campilho diz RIO DE JANEIRO - LISBOA
Fevereiro (Matilde Campilho) por Tallyta Torres - Trapecido
Letícia Haller | Rio de Janeiro-Lisboa | Matilde Campilho
Lançamento de «Trinta e Oito e Meio», de Maria Ribeiro
Flip 2015 - "A poesia em 2015"
Matilde Campilho diz COQUEIRAL
-
Jorge Jacinto da Silva Junior
Belos poemas! Parabéns!
01/dezembro/2022

Quem Gosta

Seguidores