Matilde Campilho

Matilde Campilho

Matilde Campilho é uma escritora portuguesa.

Lisboa
22588
1
29

Fevereiro

Escute só, isto é muito sério.

Anda, escuta que isso é sério!

O mundo está tremendamente esquisito. Há dez anos atrás o Leon me disse que existe uma rachadura em tudo e que é assim que a luz entra, não sei se entendi. Você percebe alguma coisa da mistura entre falhas e iluminação?

Aliás, me diga, você percebe alguma coisa de carpintaria? Você sabe por que meteram um boi naquele estábulo ao invés de um pequeno rinoceronte? Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia. Ou com os felizmente insolussionáveis mistérios que só podem vir do misticismo asiático. Um boi é um bicho tão… inexplicável. Ainda bem.

O amor é um animal tão mutante, com tantas divisões possíveis.
Lembra daqueles termômetros que usávamos na boca quando éramos pequenininhos? Lembra da queda deles no chão?

Então, acho que o amor quando aparece é em tudo semelhante à forma física do mercúrio no mundo. Quando o vidro do termômetro se quebra, o elemento químico se espalha e então ele fica se dividindo pelos salões de todas as festas. Mercúrio se multiplicando. Acho que deve ser isso uma das cinco mil explicações possíveis para o amor.

Ah é! Eu gosto de você. A luz entrou torta por nós a dentro, mas, olha, eu gosto de você! A luz do verão passado quebrou o vidro da melancolia e agora ela fica se expandindo pelas ruas todas. Desde aquele outro lado do Sol até esse tremendo agora.

Hoje ainda faz bastante frio. As cinzas ainda não aterraram sobre as cabeças disfarçadas, tem gente batucando suor e cerveja pelas ruas de nossa cidade sul. Na cidade norte, há ondas de sete metros tentando acertar no terceiro olho dos rapazinhos disfarçados de cowboys.

[suspiro]

O mestre ainda não veio decretar o começo da abstenção e, olha, a luz ainda está conosco. Sim, o mundo está absurdamente esquisito. Já ninguém confia nas imposições dos prefeitos, a esta hora na terra é um tanto carnaval, um tanto conspiração, um tanto medo. Metade fé, metade folia, metade desespero. E, provavelmente, a esta hora, uma metade do mundo está vencendo e a outra metade dormindo, há ainda outra metade limpando as armas, outra limpando o pó das flores. Mas, por causa do que me ensinou o místico, eu acredito que exista, agora, alguém profundamente acordado. Alguém que esteja vivendo entre o intervalo tênue entre o sonho e a agilidade. Suponho que ele saiba perfeitamente que este começo de século será nosso batismo do voô para nossa persistência no amor.João molhou a testa de Manuel. Os gritos das ruas molham as testas de nossos corações.

De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar.

É… é impossível viver no país de Deus. Isso eu te dou de barato. Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta, isso não é impossível, não.

Escuta, isso é sério!

Andamos crescendo juntos, distraidamente. As árvores crescem conosco. Nossa pele se estende, nosso entendimento, teso, também. O século cresce conosco. O amor pelas ventas da cara do mundo, também.
Quanto a um pra um entre nós dois, isso logo se vê. Não sei nada sobre a paixão, suspeito que você também não. Mas, começo a entender que o compasso da fé está mudando a passos largos. Dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio assumiu sua posição certa, vem comigo achar o meu trono mágico entre a folhagem. E, no caminho até lá, vem dançar comigo, vem!

Notas para um século surpreendente

Está tarde já. Parece muito cedo, mas está tarde. Tem gente morrendo por aí, gente íntima e gente privada, há explosões acontecendo bem no meio de nossos quartos, em nossos banheiros, na testa de nossos filhos. Alguns de nossos filhos pertencem ao futuro. Está tarde, por enquanto está tarde, faz tanto tempo desde a última vez que fomos até à entrada do rochedo, mais tempo ainda desde que mergulhámos na enseada e nos deparámos com o coral, com o brilho, com a coloração perfeita que fazia lembrar a transumância. Tenho pensado na palavra transumância. Tenho pensado muito naquele excerto do diário de Pavese que fala dos mitos e da atenção, dos símbolos, dos nomes. Nalgum momento, ele diz qualquer coisa como: estamos convencidos de que uma grande revelação só poderá sair da teimosa insistência numa mesma dificuldade. E também: sabemos que o modo mais seguro — e mais rápido — de nos espantarmos é fitarmos impávidos sempre o mesmo objeto. Segundo Cesare Pavese, é pela atenção e pela repetição que acontece o estouro do milagre. Ainda acredito em milagres. Ficou tarde de repente e alguns de nós não podem dormir, por muito que nos esforcemos só sabemos passar noites em branco fixando a parede e as sombras na parede. Ficamos até de madrugada brincando com as mãos e com o recorte delas, pelo menos a luz ainda incide sobre nossas mãos, há qualquer coisa de magia nos desenhos noturnos que se projetam nos tapumes de nossas casas, de nossas cavernas, de nossos ilusórios covis. Sim, fitamos impávidos sempre o mesmo objeto. Somos pessoas atentas, pelo menos deveríamos ser, piscamos os olhos devagar para que não se cansem nossas pálpebras, está tudo entrando por nossa cara adentro ao ritmo de um murro de Joe Frazier. Joe chegou a derrotar Muhammad Ali, cuidado. É preciso poupar nossas caras, nossos narizes, nossas línguas. A língua, essa, está muito relacionada com o segredo — é debaixo dela que guardamos o tesouro. Como uma criança que guarda um caroço de cereja na boca durante um dia inteiro, nós seguramos nossos segredos por meses seguidos. Só o segredo nos salvará mais tarde, muito mais tarde do que isto, agora é o tempo da transição e dos desastres aéreos, o tempo da descoberta de planetas muito semelhantes ao nosso mas a 1400 anos-luz daqui, o tempo da morte dos campeões, dos camponeses e dos escritores. Nunca se viu um ano como este, ou talvez sim, todo ano é uma foice e a foice da temporada 2015 está levando tantas cabeças. Pense no Herberto, no Manoel, pense no Galeano, pense no James Tate, estávamos tão distraídos quando morreu Tate, e os poemas dele são círculos tão absurdos quanto costurados pela linha da esperança — às vezes acho que é só disso que precisamos, precisaríamos, um cordel tosco e ao mesmo tempo iluminado, um objeto meio bola de praia, meio ostra, meio plástico meio talismã. Está tarde, talvez estejamos só cansados. Somos os descendentes do passado e o passado sempre foi meio esquisito, aprendemos a ler pelo mapa dos transportes públicos, subiu tanto o preço dos transportes públicos, os mapas das cidades se alteraram, há um desenho novo a cada esquina, só o desenho de nosso corpo não mudou e até isso é mentira. Nossos corpos vão se renovando a cada dia, a cada hora, agora que penso nisso: graças a Deus. Somos o reflexo da cordilheira. Fomos abençoados com a possibilidade do movimento, o constante movimento entre as falésias, abençoados com as tardes de verão e com o cinema que surgiu das cabeças francesas debaixo de um certo sol, foi-nos dada a estufa fria para de dentro dela poder contemplar a natureza que rebenta com tudo lá fora, foram-nos concedidos os vidros e o poder dos vidros. Fomos abençoados com a manhã, com o suor e com as coisas que conseguimos fazer com nosso suor até aos trinta e oito anos, foram-nos concedidas igrejas e cavernas e toda a espécie de templos que impressionam o silêncio, temos a possibilidade do templo em nosso próprio eixo humano, veja bem que sorte a nossa. Estamos atentos, estamos calados, estamos fixando sempre o mesmo objeto. Repetimos os nomes e os gestos para que nos possamos aproximar da realidade. Mito e realidade, que surpresa, afinal é tudo o mesmo. Está tarde, hoje a morte não entrou por nossos túneis, e é muito devagar que vamos movendo os animais para a montanha, da planície para a montanha, de casa para casa. Talvez esta noite possamos dormir em paz. Porque agora em nossas mãos está escrito a carvão aquele trecho de um poema do Pavese, que diz: “Lá fora, depois do jantar, virão as estrelas tocar/ a grande planície da terra. É debaixo deste silêncio que acontece o estouro.”

23 de Agosto de 2015

Crónica. Notas para um século surpreendente
Está tarde já. Parece muito cedo, mas está tarde. Tem gente morrendo por aí, gente íntima e gente privada, há explosões…
www.publico.pt

Matilde Campilho é uma poeta portuguesa, nascida em Cascais, 1982, estudou Literatura em Lisboa e História da Arte em Milão. Morou no Rio de Janeiro, onde também trabalhou como jornalista e redatora freelancer entre os anos de 2010 e 2013 e foi nessa estadia entre Rio e Lisboa que deu vida a sua primeira obra, Jóquei, misturando a dicção das duas cidades.

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