Marcelo Gama

Marcelo Gama

Marcelo Gama, pseudônimo de Possidônio Cezimbra Machado foi um poeta e jornalista brasileiro. Foi um dos maiores representantes da poesia simbolista no Rio Grande do Sul, movimento forte naquele Estado.

1878-03-03 Mostardas RS
1915-03-07
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Prémios e Movimentos

Simbolismo

Alguns Poemas

Sugestões do Ocaso

Para o Carlos Torelly

Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam à cisma à hora do sol posto!

Ontem fazia frio, era roxo o arrebol,
e céus e terra e tudo, as árvores e as águas,
pareciam estar carpindo as suas mágoas...
Choravam de saudade, ao ver partir o sol.

E eu também fiquei triste, até eu, que sabia
que a treva era um instante e o sol ressurgiria!

A natureza tem desses fundos mistérios...
Sei que uma sepultura é o nada, a eterna paz,
e entretanto, meu Deus! não me sinto capaz
de penetrar sozinho, à noite, em cemitérios!

Segredos que a razão não nos explica: o caso
é que eu participei da amargura do ocaso.

Erguendo os braços nus, despidos pelo outono,
o arvoredo guardava atitudes de prece.
O silêncio rezava. Era como se houvesse
romarias no espaço. A tarde tinha sono.

Da paisagem subia, espiralando, o incenso
que me fazia ter o coração suspenso.

E estávamos nós dois: eu e minh'alma, ali;
eu sentado, ela em frente; e puz-me a interrogá-la...
Pois embora ela fosse um doente sem fala,
não conto, por pudor, certas coisas que ouvi.

Por Deus Nosso Senhor, que perdi toda a calma!
E haver inda quem negue a existência da alma!

Ai! como foram más, amargas, aziagas,
as horas que passou est'alma combalida!
Mas o instante de horror maior em minha vida
foi quando eu a despi e examinei-lhe as chagas!

Depois, risquei no chão, uns sinais cabalísticos...
Lembrei-me de morrer, e puz-me a escrever dísticos...

Epitáfios assim: "Foi mau, mas morreu cedo".
E havia logo abaixo, um nome de mulher...
(A gente muita vez escreve o que não quer...)
Sepultura e noivado... Estremeci de medo.

Que se a idéia de morte às vezes nos conforta,
apavora-nos ver uma pessoa morta.

E fiquei-me a cismar. Além, a lua triste
tinha molhada em pranto a palidez da face...
(Que bom seria ouvir, se a lua nos contasse,
os romances de amor a que dos céus assiste!)

Não sei por que será que os aspectos de agosto
me convidam à cisma, à hora do sol posto!...


Publicado no livro Via Sacra (1902).

In: GAMA, Marcelo. Via Sacra e outros poemas. Posfácio de Álvaro Moreyra. Rio de Janeiro: Ed. da Sociedade Felippe d'Oliveira, 1944. p.31-3

Mulheres

Pela simples razão de eu ser viril e poeta
que celebra, encantado, eternas bodas,
olho as mulheres todas
com o mais impertinente interesse de esteta.

Por isso, às três da tarde e às vezes antes,
desconhecido entre desconhecidos,
levo para a Avenida uns ares importantes
e afinado o quinteto dos sentidos.

E ficou a deambular a tarde inteira
entre snobs e Apolos de pulseira.

Fico-me unicamente para vê-las
no florir do seu viço,
para senti-las, para analisá-las,
do autêntico ao postiço,
umas — soberbas, fúlgidas estrelas,
outras — de um palor lânguido de opalas...

E enrodilhando-as em olhares ledos,
o que se passa em mim pode ser comparado
àquele querer-tudo alvoroçado
das crianças nas lojas de brinquedos.

Olho-as, remiro-as de alto a baixo, sigo-as,
dispo-as, ponho-as em pose, impassíveis e brancas,
ora aqui desvendando imperfeições ambíguas
de atafulhadas ancas,
ora ali descobrindo, entre êxtase e surpresa,
formas definitivas de beleza.

De algumas eu já sei nomes, histórias, vidas,
crônicas passionais,
prestigiadas do encanto de um mistério;
biografias heróicas, doloridas,
escândalos banais
e banais episódios de adultério.

Porém, todas as mesmas, em conjunto,
maravilhoso assunto
de um poema intenso, em que ando a meditar,
e com um título antigo, assim ao jeito
das inscrições dos velhos pergaminhos:
"Das perfídias que hão feito
as mulheres, os vinhos
e as cartas de jogar".

(...)

Rio de Janeiro - 1909.


Poema integrante da série Dispersos.

In: GAMA, Marcelo. Via Sacra e outros poemas. Posfácio de Álvaro Moreyra. Rio de Janeiro: Ed. da Sociedade Felippe d'Oliveira, 1944. p.139-14

Feia

Feia!... Como isso dói na tua alminha débil!
É nobre a coitadita, e muito a contraria
ser forçada a morar numa tal moradia...
Eis aí porque a vejo amargurada e flébil.

E é por seres assim que eu te quero assim tanto,
com este amor tão limpo e tão sem egoísmo,
pois logo a sujaria o meu sensualismo,
se animasse essa carne algum sopro de encanto.

Toda vez que me vem de tua alma perfeita
esse ar de doçura e pesar sossegado,
evocas-me o sabor que já tenho encontrado
em certos frutos sãos, mas de casca suspeita.

Água fresca bebida à beira de uma fonte,
em mau copo de folha, enferrujado e gasto...
Como deve bater penosamente casto,
sob o teu peito murcho, o coração insonte!

Borboleta que sai de um casulo rugoso...
teu sorriso não traz convites para o beijo:
antes pede perdão... manifesta o desejo
de que não se repare em teu corpo anguloso.

Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,
porque viste alguém rir do teu porte mesquinho.
Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:
— Que bom se fosse cega a humanidade toda!

Entristeceste ao ver, numa revista de arte,
um "tipo de beleza"... E terias a palma
se fosse dado a alguém fotografar tua alma...
— não havia mulher tão linda em toda parte.

Dói-te se ouves falar, quando estás numa roda,
na formosura desta ou daquela mulher.
Vês em cada semblante um motejo qualquer...
e descreste, por fim, dos recursos da moda.

Imagino que horror deves ter aos espelhos!
E a crueldade da água em que lavas o rosto
há de forçosamente encher-te de desgosto,
repetindo que és feia e dando-te conselhos:

— Que não tenhas vaidade e não sejas faceira...
Parece-me que a ti um tal conselho é inútil,
pois tua alma sadia, abençoada e dúctil,
é uma flor que nasceu dentro de uma caveira.


Publicado no livro Via Sacra (1902).

In: GAMA, Marcelo. Via Sacra e outros poemas. Posfácio de Álvaro Moreyra. Rio de Janeiro: Ed. da Sociedade Felippe d'Oliveira, 1944. p.47-4
Marcelo Gama (Mostardas RS, 1878 - Rio de Janeiro RJ, 1915) fez apenas os estudos primários, em Cachoeira do Sul RS, em 1875. No período de 1898 a 1900 fundou o jornal Artes e Letras, em Porto Alegre, e a revista Lua, em Cachoeira do Sul. Em 1899 teve estréia sua peça A Peste Bubônica, co-autoria de Zéferino Brasil, na capital gaúcha, encenada pela Companhia Silva Pinto. Publicou crônicas sobre O Salão de Artes Estadual, no jornal Correio do Povo, em 1901. No ano seguinte, foi lançado seu primeiro livro de poesia, Via Sacra, de estética simbolista. Ainda em 1902, ocorreram as estréias do monólogo O Sonho e da peça teatral O Sol-à-Mão, escritos em parceria com Zéferino Brasil. Em 1903, teve seus poemas Versos de um Coração e Ode à Morte publicados no Almanaque Literário Estatístico do Rio Grande do Sul. Na década de 1910 publicou ainda Avatar (1904) e Noite de Insônia (1907). Em 1944 foi lançado o livro póstumo Via Sacra e Outros Poemas. Segundo a crítica Regina Zilberman, "a inauguração da estética simbolista no Sul é atribuída a Marcelo Gama, autor de Via Sacra, de 1902.".
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