CREPUSCULAR
1.
Chegamos tarde. (Era sempre maio,
sempre madrugada. Tudo era turvo.
Éramos em bando. Por medo. Ou tédio.
Havia um lobo à solta na cidade
aberta, e uma loucura provisória
era a nossa premissa, nossa promessa.
Era preciso estar o tempo todo
atento, em transe, em trânsito, no assédio
a um ou outro flanco do lobo,
fugindo de junho, perseguindo o agora,
correndo o risco de ser só um rascunho.
Éramos em branco. Por um triz. Por ora.)
2.
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.
Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,
o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,
restando da palavra só o resumo
da pálida intenção, indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.
3.
E assim, os delicados desesperam
do imperativo de concatenar
nomes e coisas, como se o perigo
vivesse num vestígio do sentido,
na derradeira pedra sobre pedra
de um prédio alvo de atentados tantos,
e negam mesmo a possibilidade
de não negar tudo — sem se dar conta
de que, se fosse à vera a negação
e nela houvesse fundo e coerência,
não haveria língua em que a expressar
que não a algaravia do silêncio.
4.
Dúvida, porém, não há: língua é língua,
e clavicórdio, clavicórdio é.
Assim como a canção do clavicórdio
não é a mesma música do vento,
e o vento não é pássaro ou cigarra
que canta, sem que o saiba, o verão,
palavra é mais que o babujar do vento,
que o monocórdio de cigarra ou pássaro,
mais mesmo que o mais sábio clavicórdio.
Mais mágica que música, afinal,
a inflacionar o mundo de fantasmas.
Desses fantasmas se faz o real.
5.
Toda palavra já foi dita. Isso é
sabido. E há que ser dita outra vez.
E outra. E cada vez é outra. E a mesma.
Nenhum de nós vai reinventar a roda.
E no entanto cada um a re-
inventa, para si. E roda. E canta.
Chegamos muito tarde, e não provamos
o doce absinto e ópio dos começos.
E no entanto, chegada a nossa vez,
recomeçamos. Palavras tardias,
mas com vertiginosa lucidez —
o ácido saber de nossos dias.
6.
No fim de tudo, restam as palavras.
Na solidão do corpo, no saber-se
apenas pasto para o esquecimento,
há sempre a semente de alguma ilíada
mínima, promessa de permanência
no mármore etéreo de uma sílaba,
mesmo sendo mero sopro, captado
na frágil arquitetura do papel,
alvenaria de ar. Restará
a palavra que deixarmos no fim da
nossa história. Que a julguem os outros,
que chegarão depois. Mais tarde ainda.
Chegamos tarde. (Era sempre maio,
sempre madrugada. Tudo era turvo.
Éramos em bando. Por medo. Ou tédio.
Havia um lobo à solta na cidade
aberta, e uma loucura provisória
era a nossa premissa, nossa promessa.
Era preciso estar o tempo todo
atento, em transe, em trânsito, no assédio
a um ou outro flanco do lobo,
fugindo de junho, perseguindo o agora,
correndo o risco de ser só um rascunho.
Éramos em branco. Por um triz. Por ora.)
2.
Chegamos tarde, é claro. Como todos.
Chegamos tarde, e nosso tempo é pouco,
o tempo exato de dizer: é tarde.
Todas as sílabas imagináveis
soaram. Nada ficou por cantar,
nem mesmo o não-ter-mais-o-que-cantar,
o não-poder-cantar, já tão cantado
que se estiolou no infinito banal
de espelhos frente a frente a refletir-se,
restando da palavra só o resumo
da pálida intenção, indisfarçada,
de não dizer, dizendo, coisa alguma.
3.
E assim, os delicados desesperam
do imperativo de concatenar
nomes e coisas, como se o perigo
vivesse num vestígio do sentido,
na derradeira pedra sobre pedra
de um prédio alvo de atentados tantos,
e negam mesmo a possibilidade
de não negar tudo — sem se dar conta
de que, se fosse à vera a negação
e nela houvesse fundo e coerência,
não haveria língua em que a expressar
que não a algaravia do silêncio.
4.
Dúvida, porém, não há: língua é língua,
e clavicórdio, clavicórdio é.
Assim como a canção do clavicórdio
não é a mesma música do vento,
e o vento não é pássaro ou cigarra
que canta, sem que o saiba, o verão,
palavra é mais que o babujar do vento,
que o monocórdio de cigarra ou pássaro,
mais mesmo que o mais sábio clavicórdio.
Mais mágica que música, afinal,
a inflacionar o mundo de fantasmas.
Desses fantasmas se faz o real.
5.
Toda palavra já foi dita. Isso é
sabido. E há que ser dita outra vez.
E outra. E cada vez é outra. E a mesma.
Nenhum de nós vai reinventar a roda.
E no entanto cada um a re-
inventa, para si. E roda. E canta.
Chegamos muito tarde, e não provamos
o doce absinto e ópio dos começos.
E no entanto, chegada a nossa vez,
recomeçamos. Palavras tardias,
mas com vertiginosa lucidez —
o ácido saber de nossos dias.
6.
No fim de tudo, restam as palavras.
Na solidão do corpo, no saber-se
apenas pasto para o esquecimento,
há sempre a semente de alguma ilíada
mínima, promessa de permanência
no mármore etéreo de uma sílaba,
mesmo sendo mero sopro, captado
na frágil arquitetura do papel,
alvenaria de ar. Restará
a palavra que deixarmos no fim da
nossa história. Que a julguem os outros,
que chegarão depois. Mais tarde ainda.
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