Raquel Nobre Guerra

Raquel Nobre Guerra

Formou-se em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa e tem mestrado em Estética e Filosofia da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Publicou Groto Sato (Mariposa Azul, 2012). O livro recebeu em Portugal o Prêmio PEN para obras de estreia.

Lisboa
12991
3
16

Aprendi a tranquilidade

Aprendi a tranquilidade de passar sobre os dias
com o domínio de um coração baixo.
De me perturbar menos a posição astrológica
de certas palavras no coração do verso.

Houve vezes em que me embaracei na musa
e tanto quis largar-me à doçura desse humor
que me cheguei de cara toda à carcaça
julgando que o bife na mesa fosse meu.
Mas a natureza morta da metáfora
não me deu talho para o poema.

Sei que qualquer aragem me atravessará o corpo
e que a mentira da manhã vai folgando entre nós
como um sol mobilizado para a morte.

Sei, porque me chego para a frente com força
que o poeta transporta um saco de luz
com um coração doente que canta
mas não há verdade nesse coração
que não termine com duas senhoras de negro.

Que não me falhe a pontaria na hora de traçar
uma obra futura para nutrimento do espírito
- essa besta furiosa que nunca chega a ser livre
por muito que fulja e se agite no homem
com mais homens dentro. Que isso seja mais
que cair na tentação de durar por escrito.

Minto, porque cedo ao poder das palavras
o que trago no saco são coisas remendadas
que vou deixando cair.

Se ao menos tivesse dois ou três dentes de ouro
e na lei que me confere vencida a ética
fizesse, como tu, felizes tantas bocas.

Mas aprofundei-me na ocupação da violência
um arzinho de filosofia para empernar meninos
um pai matemático e obsessivo como um poço sombrio
um príncipe melancólico com abalos de amor
por mulheres mais tristes que uma mulher
a correr urgências psiquiátricas para arranjar namoradinho.

Reconheço, no meio disto, a cantiga do bandido.

Se ao menos aprendesse a bravura dos recrutas:
Vá - pago um copo / a quem disser que me ama!

Mas não, garanto e mal este pouco verso
para que o leitor avance dobrado sob mim.

Corrijam-me se estiver errada
mas a razão comovida de tudo
podia começar por aqui.
Agradecer aos destroços, abrir lume,
destinar-lhe estas últimas sete palavras.

Ser convicto enfim mesmo sem saber como.
666
0


Quem Gosta

Quem Gosta

Seguidores