Ildásio Tavares

Ildásio Tavares

Ildásio Tavares foi um poeta, romancista, novelista, dramaturgo, ensaísta e compositor brasileiro.

1940-01-25
2010-10-31
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Alguns Poemas

Glosa

Mote
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . ."
Gil Vicente

Houve tempo e sacrifício
Houve sonho e muita lida
Mas no trato do ofício
Só houve ilusões perdidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas... "

Há vozes que sempre falam
Na escura noite envolvidas
Mas todas vozes se calam
E se perdem diluídas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "

Nosso corpo fez-se estrume,
Nossas forças são tolhidas,
Nossa espada está sem gume,
Nossas dores repetidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas..."

Sempre à margem dos processos
Nossas bocas são retidas
Para nós só há inversos
Todas luzes são vendidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas.

Estruturas poderosas
Todas podres, corrompidas
Nos compram e vendem gulosas
Cada vez mais entupidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "

Nem sangue de muitas mortes
Nos trouxe a luz escondida,
Poderes sempre mais fortes
Nos levaram de vencida —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "

Nas trevas de há muito e tanto
Marchamos safras sofridas,
Amargando nosso canto
Em vozes enrouquecidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "

Distante brilha esperança
De promessas esquecidas;
Atrás ficou a lembrança
De derrotas cometidas —
"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . . "

"Nós somos vida das gentes
E morte de nossas vidas. . ."
Mas em cores diferentes
As danças serão corridas
Não pensem os poderosos
Que as almas nos têm vencidas
Somos muitos e teimosos
Nossas cabeças erguidas
Sob o fardo dos milênios
Marcham tenções decididas,
Várias faces, vários gênios,
todos faces retorcidas, —
Nós teremos a chegança
Será nossa a esperança,
Nós teremos nossas vidas.

Canto do Homem Cotidiano

Eu canto o homem vulgar, desconhecido
Da imprensa, do sucesso, da evidência
O herói da rotina,
O rei do pijama,
O magnata
Do décimo terceiro mês,
O play-boy das mariposas
O imperador da contabilidade.

Esse que passa por mim
Que nunca vi outro assim.

Esse que toma cerveja
E cheira mal quando beija.

Esse que nunca é elegante
E fede a desodorante.

Esse que compra fiado
E paga sempre atrasado.

Esse que joga no bicho
E atira a pule no lixo.

Esse que sai no jornal
Por atropelo fatal.

Esse que vai ao cinema
Para esquecer seu problema.

Esse que tem aventuras
Dentro do beco às escuras.

Esse que ensina na escola
E sempre sofre da bola.

Esse que joga pelada
E é craque da canelada.

Esse que luta e se humilha
Pra casar bem sua filha.

Esse que agüenta o rojão
Pro filho ter instrução.

Esse que só se aposenta
Quando tem mais de setenta.

Esse que vejo na rua
Falando da ida a lua.

Eu canto esse mesmo, exatamente
Esse que sonhou em, mas nunca vai
Ser:
Acrobata,
Magnata,
Psiquiatra,
Diplomata,
Astronauta,
Aristocrata.
(É simplesmente democrata)
Almirante,
Traficante,
Viajante,
Caçador de
Elefante
(Vive só como aspirante)
Pintor, compositor
Senador, sabotador
Escritor ou Diretor
(É apenas sonhador)
Pistoleiro,
Costureiro,
Terrorista,
Vigarista
Delegado,
Deputado,
Galã na tela
Ou mesmo em telenovela,
Marechal,
Industrial,
Presidente,
Onipotente,
(Ele é simplesmente gente)
E, inconsciente marcha pela vida
buscando no seu bairro
Na cidade lá do interior,
No escritório, consultório
No ginásio,
Na repartição,
Na rua, no mercado, em toda a parte
Somente uma razão
Para poder dormir com a esperança
E de manhã, na hora do encontro
Com o espelho, ao fazer a barba,
Ver o reflexo do campeão,

Mas que, na frustração cotidiana,
Vai encontrando aos poucos sua glória
Por isso eu canto a luta sem memória
Desse homem que perde, e não se ufana
De no rosário de derrotas várias
E de omissões, e condições precárias
Poder contar com uma só vitória
Que não se exprime nas mentiras tantas
Espirradas sem medo das gargantas
Mas sim no que ele vence sem saber
E não se orgulha, campeão na história
Da eterna luta de sobreviver.

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