Boris Vian
Boris Paul Vian, foi um Polimata, identificado com o movimento surrealista e ao anarquismo enquanto filosofia política. Hoje em dia é sobretudo lembrado pelos seus romances e canções. O seu estilo caracterizou-se por ser altamente individual, com numerosas palavras inventadas e enredos surrealistas passados sempre num universo muito próprio do autor. Como exemplo, o seu romance Outono em Pequim não se passa nem no Outono nem em Pequim!
1920-03-10 Ville-dAvray
1959-06-23 Paris
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Alguns Poemas
Biografia
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Livros
Boris Vian nasceu em Ville d´Avray, nos arredores de Paris, a 10 de março de 1920. Foi poeta, romancista, compositor e cantor, tradutor, crítico de música, inventor e engenheiro. Contemporâneo exato de poetas tão diversos quanto João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Bob Cobbing, Henri Chopin, H.C. Artmann, Robert Duncan e Zbigniew Herbert, demonstrando a incrível pluralidade da poesia do pós-guerra.
BORIS VIAN: O HOMEM-ORQUESTRA
por Ruy Proença
Gostaria em primeiro lugar de desejar boa noite a todos os presentes. É um privilégio podermos compartilhar este momento em torno da obra de Boris Vian, escritor tão vital e sempre tão ladino que não custa cumprimentá-lo também, uma vez que pode estar disfarçado no meio de nós, como grande Sátrapa Transcendente. Desejo que esta seja portanto uma noite alegre, cheia de jazz, como as festas que o autor-compositor cansou de organizar e animar com seu trompete.
Não é tarefa simples falar de Boris Vian, artista multifacetado: escritor, compositor, trompetista, crítico de jazz e, até mesmo, cenógrafo e ator de cinema. Durante 20 anos de atividade, nos legou mais de 40 livros, entre os quais romances, contos, peças de teatro, poemas, ensaios, além de quase 500 canções registradas. Não fosse o escritor hiperativo que foi, Boris Vian assinou ainda uma dúzia de traduções de thrillers norte-americanos.
Comecemos por deixar Vian falar de si mesmo, numa de suas peças:
DIÁLOGO COM UM SUBTENENTE
Nome?
Boris, subtenente.
Sobrenome?
Vian, subtenente.
Você é estrangeiro? Armênio? Mais um desses imigrantes?
De modo algum, subtenente. Natural de Ville-d’Avray, Seine-et-Oise. – Nome do pai: Paul; nome da mãe, Yvonne; e com toda certeza, Vian vem de Viana, da Itália, de nossa irmã latina.
Você não é o primo do almirante Philip Vian?
Infelizmente não, subtenente. Não tenho parentes ilustres, salvo meus avós, que eram artesãos ferreiros e bronzistas, no duro e no sério, e que fabricaram o gradil da propriedade de Edmond Rostand, em Arnaga; e, coisa extremamente curiosa, foi pela mão de Jean Rostand, nosso vizinho em Ville-d’Avray, que entrei para a literatura...
Ah! Então você mexe com literatura... Já devia ter suspeitado.
Bem, mexo com muitas coisas, subtenente: engenheiro, autor, tradutor, músico, jornalista, intérprete, crítico de jazz e, atualmente, diretor artístico de uma gravadora de discos.
Ah, sim!... Já entendi!... O bambambã faz de tudo, o que é o mesmo que nada... quem quer abraçar o mundo fica sem força, como se diz.
Depende dos braços que se tem, subtenente. Veja os meus... Sou forte como um macaco... Talhado para a cultura que te curva sobre a gleba glabra.
Olha aqui, ô, mais respeito! Ou te meto no xadrez... Quando ouço falar de cultura, saco meu revólver.
Não é do senhor que falo, subtenente.
Se não é, parece! Os intelectuais, estou cagando pra eles...
Pois então me diga, subtenente, a pessoa que inventou esse revólver, sem o qual o senhor não poderia fazer nada, não acha que ela era um pouquinho intelectual?
Repete esse troço!?
E aquele ou aqueles que inventaram esta língua da qual o senhor se serve tão bem, subtenente, não seriam eles intelectuais?
Onde você quer chegar?
E o inventor da hierarquia no exército ou nas paróquias, o que dá praticamente na mesma, já que a baioneta e a batina são farinha do mesmo saco, não teria ele elucubrado mais que o vizinho?
Malandros da sua raça não me impressionam! Conheço esse samba!
Bom, eu não... Por isso, vou pôr a mão na massa, subtenente. Preciso me elevar até o senhor, já que não quer se rebaixar até mim... Vou lhe preparar um manual do aspirante a sambista, que o senhor ainda há de me agradecer...
Fora! Suma daqui!
Tudo bem, subtenente, já estou caindo fora...
Boris Vian nasceu em Ville-d’Avray, próximo a Paris, em 10 de março de 1920 e morreu – apenas aparentemente, segundo seus colegas esquartejadores do Colégio de Patafísica – em 23 de junho de 1959 (daí a necessidade de cumprimentá-lo sempre).
Era o segundo de quatro irmãos, três meninos e uma menina. Seus pais viviam de rendas e a família morava numa mansão, cercada de amplo parque, com gramados e árvores. Em 1929, com a queda das bolsas de valores, seu pai perdeu a fonte de renda e a família teve de se mudar para a edícula dos caseiros, na entrada do parque. Em 1932, Boris Vian é acometido por uma febre reumática, que deixa sequelas em seu coração, e, em 1935, por uma febre tifoide mal curada. Os problemas cardíacos o acompanharão até o fim de sua vida. A doença lhe trouxe duas consequências imediatas: cuidados maternos excessivos e uma ânsia de aproveitar a vida. A primeira será motivo de várias passagens em sua obra, com imagens de crianças criadas em gaiolas e filhos carnalmente ligados à mãe, a ponto de serem simultaneamente escravos e vampiros de seu sangue. A segunda, o amor passional à vida, nascido da constante ameaça de morte, também marcará toda sua obra e lhe valeu a seguinte citação: viveu em túmulo aberto.
A morte, aliás, era não só uma realidade psicológica interna, mas também uma realidade externa quase permanente: seu berço foram os escombros da primeira guerra; viveu a adolescência e o período universitário no colo da segunda guerra, tendo sido Paris ocupada pelas forças nazi-fascistas em 1940, quando contava 20 anos; todo seu período de produção cultural deu-se no bojo da guerra-fria: guerra na Coréia, guerras empreendidas pela França em suas colônias africanas e asiáticas, macartismo nos Estados Unidos, ameaça de uma guerra nuclear mundial provocada pelas duas grandes potências militares: EUA x URSS. Contra o absurdo das guerras deixaria vários registros como a canção O desertor e o conto tragicômico As formigas, que retrata o desastroso desembarque das tropas aliadas na Normandia.
A morte, duplamente presente em Boris Vian, será sua companheira e adversária no tabuleiro de xadrez. Vian escreveria: “Morte, como você é impaciente”. Esse seu diálogo com a morte se acentuará com o passar dos anos.
Boris Vian teve uma formação simultaneamente humanística e científica. No ensino médio, estudou cultura greco-latina e matemática elementar. De 1939 a 1942, cursou e se formou engenheiro na École Centrale, uma das prestigiosas escolas francesas de ciências exatas. De 1942 a 1946 trabalhou como engenheiro na AFNOR – Associação Francesa de Normalização e, de 1946 a 1947, no Instituto do Papel. Foi o bastante para se desencantar com o enorme desperdício de potencial humano, causado pelo trabalho alienado, em repartições tecnoburocráticas.
Desde a adolescência, Boris Vian se apaixonara pelo jazz. Durante a ocupação de Paris, o jazz foi censurado, por representar a cultura negro-judeu-americana. Passou a ter assim uma dupla conotação de música de resistência, tanto da cultura negra em relação aos opressores brancos, quanto da resistência dos aliados (liderados pelos norte-americanos) em relação aos países do eixo. Representava também uma cultura nova, engendrada na América, distante portanto dos velhos padrões morais europeus. Em 1943, Boris Vian entrou como trompetista na orquestra de jazz amador de Claude Abadie. Em 1947 se tornaria o trompete e o animador da cave Tabou, no coração de Saint-Germain-des-Prés.Cardíaco que era, foi aconselhado por seu médico a abandonar o trompete. Apesar disso, e essa foi uma de suas ironias, jamais deixou de tocar. O jazz será combustível para toda vida.
Boris Vian casou-se cedo, aos 21 anos, com Michelle Léglise, com quem teria um casal de filhos e de quem viria a se separar em 1952. Em 1954, casou-se em segundas núpcias com Ursula Kübler, bailarina, com quem viveu até o fim da vida. Em 1944, aos 24 anos, perde o pai, assassinado, sem que se soubesse exatamente por que e por quem.
Publica seus primeiros textos entre 44 e 45, sob os pseudônimos de Hugo Hachebuisson e Bison Ravi (anagrama de Boris Vian: literalmente, bisão extasiado, que serviria mais tarde para brincar com Úrsula, a quem chamava “meu ursinho”, ou seja, o ursinho do bisão extasiado). A esses, seguirá seu mais famoso pseudônimo, Vernon Sullivan. Boris Vian foi responsável por um dos maiores embustes literários do século XX. Leitor assíduo e tradutor do romance noir americano (Raymond Chandler, Dashiell Hammet, Peter Cheney e James Hadley Chase), resolveu ele também enveredar por esse filão. Por sugestão do amigo e pequeno editor Jean d’Halluin, apresentou-se como tradutor do suposto escritor norte-americano Vernon Sullivan, que não passava dele mesmo. Sullivan, onde o nome Vian também ecoa, foi quem selou definitivamente a fama do escritor: o livro Vou cuspir nos seus túmulos, escrito e lançado em 1946, tornou-se o best seller de 1947. Ludibriando, momentaneamente, a cerimoniosa crítica francesa com seu Sullivan, tornou-se dela desafeto e refém até a morte. Além do que, o teor explosivo de violência e erotismo que impregnava o romance Vou cuspir nos seus túmulos lhe valeu a censura do livro e um processo judicial por infringir a lei dos bons costumes e da moral, o qual tramitaria ainda por três anos. Com Sullivan e seu modo de trabalhar a violência, o anti-racismo, misturados ao erotismo, Boris Vian se postava, a seu modo, ao lado de Henry Miller.
O período de 1945 a 1950 foram anos de fermentação. Foi a apoteose da “República” de Saint-Germain-des-Prés, onde Vian compartilhava a mesa, mas nem sempre as opiniões, com Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, Raymond Queneau, Prévert, Jean Genet e outros. Raymond Queneau, secretário geral da Gallimard, quem conheceu em 1945, foi um dos principais amigos e incentivadores de Vian, tendo aberto para ele as portas do Colégio Patafísico.
1947 parece ter sido um ano de glória para Vian: best seller do ano, contratado como animador e trompetista do Tabou, escreve O esquartejamento para todos, publica Outono em Pequim, Vercoquin et le Plancton e seu romance até hoje mais difundido: A espuma dos dias.
Mas a glória foi aos poucos abandonando Boris Vian. Em 1949, foi proibido o romance Vou cuspir nos seus túmulos. Em 1950, é condenado a pagar uma multa considerável. Em 1952, separa-se de Michelle.
Boris Vian, não obstante, não desiste: em 1952 foi nomeado Esquartejador de primeira classe do Colégio de Patafísica. Mais tarde, se tornaria Sátrapa, posto de distinção máxima. Diante do fracasso de seus últimos romances, Boris Vian dá a volta por cima e retoma sua comunicação com o público através da música, compondo e se apresentando como intérprete. A título de curiosidade, são tributários de Vian nessa área compositores como Serge Gainsbourg, Léo Ferré e Serge Regiani.
Em 1959, o coração de Boris Vian falhou de vez, durante uma sessão privada de apresentação do filme Vou cuspir nos seus túmulos, projeto de cujo início tinha participado, mas que fora levado a cabo à sua revelia, e que o desagradara profundamente.
Vamos agora abordar a personalidade artística de Boris Vian, que começa a se revelar já nos títulos de alguns de seus textos. Vejamos alguns exemplos, traduzidos livremente: Vou cuspir nos seus túmulos, A espuma dos dias, Os mortos têm todos a mesma pele, Outono em Pequim, E mataremos todos os horrorosos, As formigas, O esquartejamento para todos, Elas não se dão conta, O arranca-coração, Os construtores de Império ou o Schmürz, Cantilenas gelatinizadas, Não queria partir, O lanche dos generais, Na frente de Zizique, Atrás de Zizique, Escritos pornográficos etc. etc. Imagens de morte, violência, poder, associadas no mais das vezes a sinais de menosprezo moral e à questão racial. Imagens erótico-pornográficas. Imagens líricas. Percebemos portanto, já nos títulos, alguns dos elementos que sintetizam a imaginação do autor: tendência ao deboche e ao sarcasmo, macabro ou violento, associada a grande sensualidade e lirismo. Querendo diferenciar o humor em Boris Vian de um humor meramente macabro, humor negro, Caradec, no prefácio de um de seus livros, chamou-o de “humor vermelho”.
O mundo de Vian é sobretudo o da “emancipação dolorosa do adulto que se separa da adolescência”. E o mundo adulto é visto por ele como bloqueio, como opressor, aniquilador. Neste sentido, Vian se aproxima de Kafka. No extremo desse ponto de vista há a guerra: a forma mais sofisticada e degradante de trabalho, já que nela se trabalha para gerar novos trabalhos.
A obra poética de Boris Vian pode parecer exígua perto dos mais de 40 livros publicados em vida, mas certamente é o motor de sua criação, isto é, irradia e ecoa por toda sua atividade criativa, dos romances às canções, e por isso mesmo é uma boa porta de entrada para o restante da obra.
Entre 1939, provavelmente, e 1944, Boris Vian escreve 105 sonetos, acrescidos de meia-dúzia de baladas, que seriam publicados postumamente sob o título de Cem Sonetos (fazendo trocadilho com a homofonia de Cem Sonetos, do número 100, e Sem Sonetos, isto é, nada). Trata-se de sua primeira obra escrita, tentativa músico-matemático-literária, considerada pelo próprio autor como uma obra ainda imatura. É interessante observar que Vian debuta com esse extenso e meticuloso trabalho com formas fixas, experimentando diferentes metros de verso, bem como diferentes combinações de rimas. Já neste livro, a utilização de um humor corrosivo mostra uma visão de mundo iconoclasta e, indiretamente, uma dessacralização do discurso poético.
À criação dos sonetos, seguirão quatro volumes de poesia: Barnum´s Digest, Cantilenas Gelatinizadas, Poemas Inéditos e Não queria partir. Vian, que começou com uma poesia formal, inverterá os sinais de seu projeto e percorrerá um caminho que vai do verso geralmente livre no segundo livro, até culminar, sob a forma de um ritornelo, no predomínio do verso metrificado em seu livro final.
Dois grandes símbolos parecem permear toda a obra do autor, sintetizados no binômio comédia-tragédia. Alguém usou a feliz metáfora de que nele “trabalhava um olho cômico sob uma sobrancelha amarga”. Estes dois polos entremeiam-se todo o tempo na obra de Vian, no detalhe e no todo, o mais das vezes servindo o humor como lenitivo para a condição trágica do homem. Esta conjunção de fatores, isto é, o humor associado ao horror, cria um certo parentesco entre a obra de Vian e os mestres da literatura do absurdo, entre eles Becket e Ionesco.
Podemos rastrear a dança que ocorre entre este par de extremos. Nas obras iniciais, o humor conduz o trágico na dança. Já no último livro, a situação é inversa, o balanço é francamente favorável ao trágico, servindo o humor apenas como a provisória e derradeira trincheira. A música que se dança, é sem dúvida a da morte. Nada mais apropriado para regê-la do que metros exatos, em ritmo de tambores, carregados de densa ironia. Como num réquiem para si mesmo, a morte é quem remunera o trabalho do autor.
O último livro de poemas de Boris Vian, Não queria partir, é talvez sua obra de poesia mais bem acabada. São poemas escritos quase todos por volta de 1952. Ganham em tensão e dramaticidade. A morte infiltra-se por todos os poros. Mas o escritor não se rende, luta até o fim, brandindo com destreza sua melhor arma: o humor.
O humor em Boris Vian tem vários sobrenomes, mas são todos primos-irmãos entre si: satírico, mordaz, cáustico, sarcástico, sardônico, irônico, non-sense, burlesco etc. etc. Nele aparecem a ternura misturada com a violência, o horror misturado ao cômico, o natural ao delírio. Foi um mestre nos trocadilhos, nas fusões de expressões idiomáticas, nos jogos de ambiguidade, na reformulação de provérbios, nas palavras-valise, nos neologismos.
Se Boris estivesse nos ouvindo agora (e talvez esteja mesmo), tenho certeza de que ficaria feliz com a homenagem que estamos lhe fazendo esta noite e que pode ser sintetizada de forma afetiva no trocadilho elaborado por Guilherme de Almeida, não o poeta, mas aluno da São Francisco e seu fã de carteirinha (sim, porque, por incrível que pareça, Boris Vian consegue operar milagres até mesmo a partir de onde está: tem um verdadeiro fã-clube espalhado pelo mundo; só em países como o Brasil, de tão poucos leitores, ainda é praticamente desconhecido). O trocadilho é: Boris Vian: le plus grand écrivian du siècle (cuja tradução literal seria, Boris Vian: o maior escrivian do século).
Para encerrar este breve retrato, vamos a uma estorieta patafísica criada a quatro mãos por Boris Vian e um de seus mais assíduos parceiros musicais, Henri Salvador.
HS. Sua excelência o bispo de Worcester mandou afixar em todas as igrejas de sua diocese o aviso seguinte:
Instale em sua casa um bar do qual você será o único cliente.
BV. Dê a sua mulher dinheiro suficiente para comprar a primeira garrafa.
HS. Beba em sua casa, mas pague para sua mulher, por cada dose, o preço que pagaria num bar.
BV. Dê dinheiro a sua mulher para que ela compre uma segunda garrafa. Assim seu bar terá sempre bebida e sua mulher poderá fazer o supermercado com o lucro.
HS. Convença-se de que, agindo assim, você morrerá de cirrose. BV. Mas você poderá morrer tranquilo. Sua mulher terá feito importantes economias e poderá educar as crianças.
HS. E ela poderá se casar de novo com um homem inteligente.
BORIS VIAN: O HOMEM-ORQUESTRA
por Ruy Proença
Gostaria em primeiro lugar de desejar boa noite a todos os presentes. É um privilégio podermos compartilhar este momento em torno da obra de Boris Vian, escritor tão vital e sempre tão ladino que não custa cumprimentá-lo também, uma vez que pode estar disfarçado no meio de nós, como grande Sátrapa Transcendente. Desejo que esta seja portanto uma noite alegre, cheia de jazz, como as festas que o autor-compositor cansou de organizar e animar com seu trompete.
Não é tarefa simples falar de Boris Vian, artista multifacetado: escritor, compositor, trompetista, crítico de jazz e, até mesmo, cenógrafo e ator de cinema. Durante 20 anos de atividade, nos legou mais de 40 livros, entre os quais romances, contos, peças de teatro, poemas, ensaios, além de quase 500 canções registradas. Não fosse o escritor hiperativo que foi, Boris Vian assinou ainda uma dúzia de traduções de thrillers norte-americanos.
Comecemos por deixar Vian falar de si mesmo, numa de suas peças:
DIÁLOGO COM UM SUBTENENTE
Nome?
Boris, subtenente.
Sobrenome?
Vian, subtenente.
Você é estrangeiro? Armênio? Mais um desses imigrantes?
De modo algum, subtenente. Natural de Ville-d’Avray, Seine-et-Oise. – Nome do pai: Paul; nome da mãe, Yvonne; e com toda certeza, Vian vem de Viana, da Itália, de nossa irmã latina.
Você não é o primo do almirante Philip Vian?
Infelizmente não, subtenente. Não tenho parentes ilustres, salvo meus avós, que eram artesãos ferreiros e bronzistas, no duro e no sério, e que fabricaram o gradil da propriedade de Edmond Rostand, em Arnaga; e, coisa extremamente curiosa, foi pela mão de Jean Rostand, nosso vizinho em Ville-d’Avray, que entrei para a literatura...
Ah! Então você mexe com literatura... Já devia ter suspeitado.
Bem, mexo com muitas coisas, subtenente: engenheiro, autor, tradutor, músico, jornalista, intérprete, crítico de jazz e, atualmente, diretor artístico de uma gravadora de discos.
Ah, sim!... Já entendi!... O bambambã faz de tudo, o que é o mesmo que nada... quem quer abraçar o mundo fica sem força, como se diz.
Depende dos braços que se tem, subtenente. Veja os meus... Sou forte como um macaco... Talhado para a cultura que te curva sobre a gleba glabra.
Olha aqui, ô, mais respeito! Ou te meto no xadrez... Quando ouço falar de cultura, saco meu revólver.
Não é do senhor que falo, subtenente.
Se não é, parece! Os intelectuais, estou cagando pra eles...
Pois então me diga, subtenente, a pessoa que inventou esse revólver, sem o qual o senhor não poderia fazer nada, não acha que ela era um pouquinho intelectual?
Repete esse troço!?
E aquele ou aqueles que inventaram esta língua da qual o senhor se serve tão bem, subtenente, não seriam eles intelectuais?
Onde você quer chegar?
E o inventor da hierarquia no exército ou nas paróquias, o que dá praticamente na mesma, já que a baioneta e a batina são farinha do mesmo saco, não teria ele elucubrado mais que o vizinho?
Malandros da sua raça não me impressionam! Conheço esse samba!
Bom, eu não... Por isso, vou pôr a mão na massa, subtenente. Preciso me elevar até o senhor, já que não quer se rebaixar até mim... Vou lhe preparar um manual do aspirante a sambista, que o senhor ainda há de me agradecer...
Fora! Suma daqui!
Tudo bem, subtenente, já estou caindo fora...
Boris Vian nasceu em Ville-d’Avray, próximo a Paris, em 10 de março de 1920 e morreu – apenas aparentemente, segundo seus colegas esquartejadores do Colégio de Patafísica – em 23 de junho de 1959 (daí a necessidade de cumprimentá-lo sempre).
Era o segundo de quatro irmãos, três meninos e uma menina. Seus pais viviam de rendas e a família morava numa mansão, cercada de amplo parque, com gramados e árvores. Em 1929, com a queda das bolsas de valores, seu pai perdeu a fonte de renda e a família teve de se mudar para a edícula dos caseiros, na entrada do parque. Em 1932, Boris Vian é acometido por uma febre reumática, que deixa sequelas em seu coração, e, em 1935, por uma febre tifoide mal curada. Os problemas cardíacos o acompanharão até o fim de sua vida. A doença lhe trouxe duas consequências imediatas: cuidados maternos excessivos e uma ânsia de aproveitar a vida. A primeira será motivo de várias passagens em sua obra, com imagens de crianças criadas em gaiolas e filhos carnalmente ligados à mãe, a ponto de serem simultaneamente escravos e vampiros de seu sangue. A segunda, o amor passional à vida, nascido da constante ameaça de morte, também marcará toda sua obra e lhe valeu a seguinte citação: viveu em túmulo aberto.
A morte, aliás, era não só uma realidade psicológica interna, mas também uma realidade externa quase permanente: seu berço foram os escombros da primeira guerra; viveu a adolescência e o período universitário no colo da segunda guerra, tendo sido Paris ocupada pelas forças nazi-fascistas em 1940, quando contava 20 anos; todo seu período de produção cultural deu-se no bojo da guerra-fria: guerra na Coréia, guerras empreendidas pela França em suas colônias africanas e asiáticas, macartismo nos Estados Unidos, ameaça de uma guerra nuclear mundial provocada pelas duas grandes potências militares: EUA x URSS. Contra o absurdo das guerras deixaria vários registros como a canção O desertor e o conto tragicômico As formigas, que retrata o desastroso desembarque das tropas aliadas na Normandia.
A morte, duplamente presente em Boris Vian, será sua companheira e adversária no tabuleiro de xadrez. Vian escreveria: “Morte, como você é impaciente”. Esse seu diálogo com a morte se acentuará com o passar dos anos.
Boris Vian teve uma formação simultaneamente humanística e científica. No ensino médio, estudou cultura greco-latina e matemática elementar. De 1939 a 1942, cursou e se formou engenheiro na École Centrale, uma das prestigiosas escolas francesas de ciências exatas. De 1942 a 1946 trabalhou como engenheiro na AFNOR – Associação Francesa de Normalização e, de 1946 a 1947, no Instituto do Papel. Foi o bastante para se desencantar com o enorme desperdício de potencial humano, causado pelo trabalho alienado, em repartições tecnoburocráticas.
Desde a adolescência, Boris Vian se apaixonara pelo jazz. Durante a ocupação de Paris, o jazz foi censurado, por representar a cultura negro-judeu-americana. Passou a ter assim uma dupla conotação de música de resistência, tanto da cultura negra em relação aos opressores brancos, quanto da resistência dos aliados (liderados pelos norte-americanos) em relação aos países do eixo. Representava também uma cultura nova, engendrada na América, distante portanto dos velhos padrões morais europeus. Em 1943, Boris Vian entrou como trompetista na orquestra de jazz amador de Claude Abadie. Em 1947 se tornaria o trompete e o animador da cave Tabou, no coração de Saint-Germain-des-Prés.Cardíaco que era, foi aconselhado por seu médico a abandonar o trompete. Apesar disso, e essa foi uma de suas ironias, jamais deixou de tocar. O jazz será combustível para toda vida.
Boris Vian casou-se cedo, aos 21 anos, com Michelle Léglise, com quem teria um casal de filhos e de quem viria a se separar em 1952. Em 1954, casou-se em segundas núpcias com Ursula Kübler, bailarina, com quem viveu até o fim da vida. Em 1944, aos 24 anos, perde o pai, assassinado, sem que se soubesse exatamente por que e por quem.
Publica seus primeiros textos entre 44 e 45, sob os pseudônimos de Hugo Hachebuisson e Bison Ravi (anagrama de Boris Vian: literalmente, bisão extasiado, que serviria mais tarde para brincar com Úrsula, a quem chamava “meu ursinho”, ou seja, o ursinho do bisão extasiado). A esses, seguirá seu mais famoso pseudônimo, Vernon Sullivan. Boris Vian foi responsável por um dos maiores embustes literários do século XX. Leitor assíduo e tradutor do romance noir americano (Raymond Chandler, Dashiell Hammet, Peter Cheney e James Hadley Chase), resolveu ele também enveredar por esse filão. Por sugestão do amigo e pequeno editor Jean d’Halluin, apresentou-se como tradutor do suposto escritor norte-americano Vernon Sullivan, que não passava dele mesmo. Sullivan, onde o nome Vian também ecoa, foi quem selou definitivamente a fama do escritor: o livro Vou cuspir nos seus túmulos, escrito e lançado em 1946, tornou-se o best seller de 1947. Ludibriando, momentaneamente, a cerimoniosa crítica francesa com seu Sullivan, tornou-se dela desafeto e refém até a morte. Além do que, o teor explosivo de violência e erotismo que impregnava o romance Vou cuspir nos seus túmulos lhe valeu a censura do livro e um processo judicial por infringir a lei dos bons costumes e da moral, o qual tramitaria ainda por três anos. Com Sullivan e seu modo de trabalhar a violência, o anti-racismo, misturados ao erotismo, Boris Vian se postava, a seu modo, ao lado de Henry Miller.
O período de 1945 a 1950 foram anos de fermentação. Foi a apoteose da “República” de Saint-Germain-des-Prés, onde Vian compartilhava a mesa, mas nem sempre as opiniões, com Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, Raymond Queneau, Prévert, Jean Genet e outros. Raymond Queneau, secretário geral da Gallimard, quem conheceu em 1945, foi um dos principais amigos e incentivadores de Vian, tendo aberto para ele as portas do Colégio Patafísico.
1947 parece ter sido um ano de glória para Vian: best seller do ano, contratado como animador e trompetista do Tabou, escreve O esquartejamento para todos, publica Outono em Pequim, Vercoquin et le Plancton e seu romance até hoje mais difundido: A espuma dos dias.
Mas a glória foi aos poucos abandonando Boris Vian. Em 1949, foi proibido o romance Vou cuspir nos seus túmulos. Em 1950, é condenado a pagar uma multa considerável. Em 1952, separa-se de Michelle.
Boris Vian, não obstante, não desiste: em 1952 foi nomeado Esquartejador de primeira classe do Colégio de Patafísica. Mais tarde, se tornaria Sátrapa, posto de distinção máxima. Diante do fracasso de seus últimos romances, Boris Vian dá a volta por cima e retoma sua comunicação com o público através da música, compondo e se apresentando como intérprete. A título de curiosidade, são tributários de Vian nessa área compositores como Serge Gainsbourg, Léo Ferré e Serge Regiani.
Em 1959, o coração de Boris Vian falhou de vez, durante uma sessão privada de apresentação do filme Vou cuspir nos seus túmulos, projeto de cujo início tinha participado, mas que fora levado a cabo à sua revelia, e que o desagradara profundamente.
Vamos agora abordar a personalidade artística de Boris Vian, que começa a se revelar já nos títulos de alguns de seus textos. Vejamos alguns exemplos, traduzidos livremente: Vou cuspir nos seus túmulos, A espuma dos dias, Os mortos têm todos a mesma pele, Outono em Pequim, E mataremos todos os horrorosos, As formigas, O esquartejamento para todos, Elas não se dão conta, O arranca-coração, Os construtores de Império ou o Schmürz, Cantilenas gelatinizadas, Não queria partir, O lanche dos generais, Na frente de Zizique, Atrás de Zizique, Escritos pornográficos etc. etc. Imagens de morte, violência, poder, associadas no mais das vezes a sinais de menosprezo moral e à questão racial. Imagens erótico-pornográficas. Imagens líricas. Percebemos portanto, já nos títulos, alguns dos elementos que sintetizam a imaginação do autor: tendência ao deboche e ao sarcasmo, macabro ou violento, associada a grande sensualidade e lirismo. Querendo diferenciar o humor em Boris Vian de um humor meramente macabro, humor negro, Caradec, no prefácio de um de seus livros, chamou-o de “humor vermelho”.
O mundo de Vian é sobretudo o da “emancipação dolorosa do adulto que se separa da adolescência”. E o mundo adulto é visto por ele como bloqueio, como opressor, aniquilador. Neste sentido, Vian se aproxima de Kafka. No extremo desse ponto de vista há a guerra: a forma mais sofisticada e degradante de trabalho, já que nela se trabalha para gerar novos trabalhos.
A obra poética de Boris Vian pode parecer exígua perto dos mais de 40 livros publicados em vida, mas certamente é o motor de sua criação, isto é, irradia e ecoa por toda sua atividade criativa, dos romances às canções, e por isso mesmo é uma boa porta de entrada para o restante da obra.
Entre 1939, provavelmente, e 1944, Boris Vian escreve 105 sonetos, acrescidos de meia-dúzia de baladas, que seriam publicados postumamente sob o título de Cem Sonetos (fazendo trocadilho com a homofonia de Cem Sonetos, do número 100, e Sem Sonetos, isto é, nada). Trata-se de sua primeira obra escrita, tentativa músico-matemático-literária, considerada pelo próprio autor como uma obra ainda imatura. É interessante observar que Vian debuta com esse extenso e meticuloso trabalho com formas fixas, experimentando diferentes metros de verso, bem como diferentes combinações de rimas. Já neste livro, a utilização de um humor corrosivo mostra uma visão de mundo iconoclasta e, indiretamente, uma dessacralização do discurso poético.
À criação dos sonetos, seguirão quatro volumes de poesia: Barnum´s Digest, Cantilenas Gelatinizadas, Poemas Inéditos e Não queria partir. Vian, que começou com uma poesia formal, inverterá os sinais de seu projeto e percorrerá um caminho que vai do verso geralmente livre no segundo livro, até culminar, sob a forma de um ritornelo, no predomínio do verso metrificado em seu livro final.
Dois grandes símbolos parecem permear toda a obra do autor, sintetizados no binômio comédia-tragédia. Alguém usou a feliz metáfora de que nele “trabalhava um olho cômico sob uma sobrancelha amarga”. Estes dois polos entremeiam-se todo o tempo na obra de Vian, no detalhe e no todo, o mais das vezes servindo o humor como lenitivo para a condição trágica do homem. Esta conjunção de fatores, isto é, o humor associado ao horror, cria um certo parentesco entre a obra de Vian e os mestres da literatura do absurdo, entre eles Becket e Ionesco.
Podemos rastrear a dança que ocorre entre este par de extremos. Nas obras iniciais, o humor conduz o trágico na dança. Já no último livro, a situação é inversa, o balanço é francamente favorável ao trágico, servindo o humor apenas como a provisória e derradeira trincheira. A música que se dança, é sem dúvida a da morte. Nada mais apropriado para regê-la do que metros exatos, em ritmo de tambores, carregados de densa ironia. Como num réquiem para si mesmo, a morte é quem remunera o trabalho do autor.
O último livro de poemas de Boris Vian, Não queria partir, é talvez sua obra de poesia mais bem acabada. São poemas escritos quase todos por volta de 1952. Ganham em tensão e dramaticidade. A morte infiltra-se por todos os poros. Mas o escritor não se rende, luta até o fim, brandindo com destreza sua melhor arma: o humor.
O humor em Boris Vian tem vários sobrenomes, mas são todos primos-irmãos entre si: satírico, mordaz, cáustico, sarcástico, sardônico, irônico, non-sense, burlesco etc. etc. Nele aparecem a ternura misturada com a violência, o horror misturado ao cômico, o natural ao delírio. Foi um mestre nos trocadilhos, nas fusões de expressões idiomáticas, nos jogos de ambiguidade, na reformulação de provérbios, nas palavras-valise, nos neologismos.
Se Boris estivesse nos ouvindo agora (e talvez esteja mesmo), tenho certeza de que ficaria feliz com a homenagem que estamos lhe fazendo esta noite e que pode ser sintetizada de forma afetiva no trocadilho elaborado por Guilherme de Almeida, não o poeta, mas aluno da São Francisco e seu fã de carteirinha (sim, porque, por incrível que pareça, Boris Vian consegue operar milagres até mesmo a partir de onde está: tem um verdadeiro fã-clube espalhado pelo mundo; só em países como o Brasil, de tão poucos leitores, ainda é praticamente desconhecido). O trocadilho é: Boris Vian: le plus grand écrivian du siècle (cuja tradução literal seria, Boris Vian: o maior escrivian do século).
Para encerrar este breve retrato, vamos a uma estorieta patafísica criada a quatro mãos por Boris Vian e um de seus mais assíduos parceiros musicais, Henri Salvador.
HS. Sua excelência o bispo de Worcester mandou afixar em todas as igrejas de sua diocese o aviso seguinte:
Instale em sua casa um bar do qual você será o único cliente.
BV. Dê a sua mulher dinheiro suficiente para comprar a primeira garrafa.
HS. Beba em sua casa, mas pague para sua mulher, por cada dose, o preço que pagaria num bar.
BV. Dê dinheiro a sua mulher para que ela compre uma segunda garrafa. Assim seu bar terá sempre bebida e sua mulher poderá fazer o supermercado com o lucro.
HS. Convença-se de que, agindo assim, você morrerá de cirrose. BV. Mas você poderá morrer tranquilo. Sua mulher terá feito importantes economias e poderá educar as crianças.
HS. E ela poderá se casar de novo com um homem inteligente.