Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Sequestro de Guilhermino César
Ao completar setent’anos
Um dia convoco Cyro dos Anjos e planejo com ele um sequestro.
Voamos (perucas e bigodes despistadores) para Porto Alegre.
Lá ficaremos à espreita na Avenida Independência.
Quando sair de certo edifício um incauto senhor de óculos,
nosso carro lhe embargará os passos
e ele será convidado a seguir conosco
rumo a lugar que bem sabe.
Assim roubaremos Guilhermino César ao País do Rio Grande
e o transportaremos ao País da Memória,
país de cafés-sentados e redações não eletrônicas de jornais,
de repartições públicas onde se cumpria o destino de literatos sem pecúnia,
autores de discursos que jamais pronunciaríamos,
pois os concebíamos para outros os pronunciarem
no majestático palanque do Poder,
enquanto refocilávamos em orgias
com a ninfa de coxas de espuma e seios-orquídea
chamada Literatura,
nosso maior amor e perdição.
Levaremos Guilhermino para livrarias
que não existem mais,
cinemas, bailes estudantis, piqueniques serranos
que não existem mais,
debates flamívomos, cambalhotas de vanguarda
que não existem mais,
tudo que não existe mais e continua,
anulado, existindo.
Nesse país que foi o nosso
na neblinosa companhia de Emílio Moura,
João Alphonsus, outros, outros
de que já não há notícia terrestre,
reflorescemos
ao som indelével da valsa e do fox-trot
brindados pela orquestra do Maestro Vespasiano.
Refloresceremos todos. O tempo, acidente.
Outro, mudanças. Guilhermino
acaba de chegar de Cataguases,
estudante de medicina e ritmo,
nosso mais moço companheiro para sempre.
Nunca sairá daqui, não sairemos.
Ninguém fará de nós os septuagenários que somos,
dispersos, divididos no mapa das circunstâncias.
Este, o nosso eterno, etéreo território.
Aqui assistimos, somos. O resto, aparência.
Este mesmo escrito: aparência,
não a realidade que se refere.
No único país real encontramo-nos em Guilhermino,
o que, menino, pediu ao pai uma bicicleta
e o velho deu-lhe as poesias de Bilac.
Que não nos procurem, não nos importunem. Deixem-nos
fruir o néctar absoluto.
Um dia convoco Cyro dos Anjos e planejo com ele um sequestro.
Voamos (perucas e bigodes despistadores) para Porto Alegre.
Lá ficaremos à espreita na Avenida Independência.
Quando sair de certo edifício um incauto senhor de óculos,
nosso carro lhe embargará os passos
e ele será convidado a seguir conosco
rumo a lugar que bem sabe.
Assim roubaremos Guilhermino César ao País do Rio Grande
e o transportaremos ao País da Memória,
país de cafés-sentados e redações não eletrônicas de jornais,
de repartições públicas onde se cumpria o destino de literatos sem pecúnia,
autores de discursos que jamais pronunciaríamos,
pois os concebíamos para outros os pronunciarem
no majestático palanque do Poder,
enquanto refocilávamos em orgias
com a ninfa de coxas de espuma e seios-orquídea
chamada Literatura,
nosso maior amor e perdição.
Levaremos Guilhermino para livrarias
que não existem mais,
cinemas, bailes estudantis, piqueniques serranos
que não existem mais,
debates flamívomos, cambalhotas de vanguarda
que não existem mais,
tudo que não existe mais e continua,
anulado, existindo.
Nesse país que foi o nosso
na neblinosa companhia de Emílio Moura,
João Alphonsus, outros, outros
de que já não há notícia terrestre,
reflorescemos
ao som indelével da valsa e do fox-trot
brindados pela orquestra do Maestro Vespasiano.
Refloresceremos todos. O tempo, acidente.
Outro, mudanças. Guilhermino
acaba de chegar de Cataguases,
estudante de medicina e ritmo,
nosso mais moço companheiro para sempre.
Nunca sairá daqui, não sairemos.
Ninguém fará de nós os septuagenários que somos,
dispersos, divididos no mapa das circunstâncias.
Este, o nosso eterno, etéreo território.
Aqui assistimos, somos. O resto, aparência.
Este mesmo escrito: aparência,
não a realidade que se refere.
No único país real encontramo-nos em Guilhermino,
o que, menino, pediu ao pai uma bicicleta
e o velho deu-lhe as poesias de Bilac.
Que não nos procurem, não nos importunem. Deixem-nos
fruir o néctar absoluto.
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