Sobre o Rosto da Terra
a Maria Alberta Menéres
e E.M. de Melo e Castro
Sobe da nossa condição uma vontade de brancura. Até ao interior das casas, até à evidência dos rostos. A brancura iguala a liberdade do dia ao ascendermos à planura onde se respira de pé, rosto a rosto, na facilidade do vento.
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Entre fios luminosos, rasteiros. Perpassa o vento baixo (o solo tem essa rugosidade amorosa que o dedo declina). As narinas respiram a paz na memória longínqua dum galo, fonte de eternidade. Estar, estar assim sobre o rosto da terra.
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As evidências comovem-se. No acompanhamento do mar, animados pelo sussurro unânime. Os poucos que somos constelamo-nos estrela do mar. Em cada bico geramos um irmão futuro que canta a nossa liberdade.
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De um quarto quente, corremos a uma varanda, uma praia ou uma janela. O mar visita-nos mesmo no espelho. Ao crepúsculo, um sangue alaranjado aflui ao rosto das casas. Depois do mar, sulcamos a terra, a caminho da noite, viajamos na brisa, na fugitiva liberdade dos nossos sonhos.
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Escolho a vaga breve, a súbita, que emerge na planura fatigante. A aridez da luz irisa os arabescos móveis. Estendo a rede de sombra, onde os sonhos afluem. O breve tempo de construir a casa de vento onde circula a paz viva entre clareiras de espaço e corpos libertos.
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Semeamos no mar os grãos da sede. O seu bafo transporta-nos a uma frescura milenária. O mar devasta-nos as ruínas, os muros, as construções míopes. Regressamos a uma idade nova onde as habitações não ignoram a pureza dos joelhos.
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Há um caminho que te conduz até ao sono, ao nível do mar.
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Regresso a um tempo de insecto. Este ar de montanha — o meu quarto, como a vida surda dum planeta. Aos meus ouvidos, a planície propaga-se de planície em planície, num silêncio de página.
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Fresca amargura, fruto de erva. Terra indecisa, terra de nuvem.
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De cada lado do caminho, o acompanhamento do branco. O cotovelo do muro.
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Muro de ataque
resto para viver
deflagração seca
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Garganta na terra. Mãos rasas na extensão do vento, livre na pele, coágulo, raiz do tempo.
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Sobre a pedra de ferro, reunido na espessura de osso, refrescado pelas ervas, tão flexíveis, acordo com o rosto de ar.
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Olho nascente à beira do chão, húmido de penugens, de uma pureza de dedo, de um sono lúcido sobre o solo, numa manhã de claridade ao rés de tudo.
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Saio da sombra à ardência do vento. Uma lâmpada se acende na planura oscilante.
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Cabeça de lâmpada, punho reflexo. Olhos de água abertos, atravessa a cidade derrotada, a caminho do dia de água. Um homem de ervas, com uma arma de pedra, dá-me o bom dia da flor do vento.
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Sou filho do primeiro dia que vem, da primeira hora sem memória. O pão branco da manhã da terra, ei-lo coração, língua do presente salvo na tua mão.
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Percorro esse braço de sofrimento, esse promontório sulcado. As flores espalmadas de sangue, a incisão das unhas, os sulcos das algemas. Terra de memória abrupta, veias subterrâneas, acesas.
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Neste deserto de lua, sem fronteiras, na unidade do vento. Uma palavra renova-se da margem de um ouvido a outro, ó memória nova.
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O muro basta-me para conter a sede. A terra dá-me a certeza da sua vontade, o seu pão de pedras. A fronte recebe o vento. Vivo devorado de espaço, aberto à luz, como um tronco a que uma cabeça assoma, voltada ao horizonte.
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Bebi a cor do mar e regressei às ervas, ao espelho dos muros. Deitei-me na terra, todas as sílabas eram de ar, o vento tecia a seda de uma pausa livre.
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Dureza de estrada, paciência de um caminhar sem árvores, voluntário de passo a passo. Nenhum rosto. A luz inclina-se até se debruçar sobre os montículos de terra. Neste silêncio raso a terra não respira.
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O ar tremula seco sobre as barreiras. Caminho em direcção às pedras. Um tronco rugoso como uma paragem no silêncio.
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Da superfície emerge a cabeça duma lâmpada, a casca dum fruto. A fenda do muro mostra a terra que se esboroa. O vento passa como uma pá.
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A terra fresca humedecendo a pedra, o campo abandonado onde o ar se suspende e seca contra o muro.