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Exemplos

Herberto Helder

Herberto Helder

Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.

1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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4.

Esta é a mãe central com os dedos luzindo,
sentada branca sob a cúpula da cabeça truculenta, enquanto
as ressacas do sangue cantam nas cavernas;
este é o pólipo vivo agarrado ao meu peito como um mamilo
nas massas tecidas
sobre o coração; que tem as garras
à mesa
entre os talheres e a louça,
e noutros quartos é tão profunda se cai
o dia pela parede como uma janela,
se o espelho cai assim com o dia profundo
para dentro sempre
e para fora, uma poça;
é centralmente toda a mãe com uma cara magnificada
expelida pelas noites,
sussurrando;
matriz mater madre e madrepérola
e pedra matricial minada pelos meandros da própria
água
fina em sua agulharia de veias e artérias;
fundamento
de pavor e doçura, o pêlo brilhando sobre atesta,
os nós todos da cara,
a boca até à garganta,
o vestido
brilhando entre os braços ressaltados e sobre as pernas;
este corpo que me engolfa
como seu alimento entre os dentes e o ânus, e seu murmúrio
impelido dos pulmões, sopro que o sangue entenebrece
e na boca clareia como uma volta
de seda;
os feixes de um candelabro que fixa a casa
desde as funduras de sua obscura teia;
esta é a mãe animal caçada na floresta mitológica,
a besta aluada sob as redes
e as flechas;
paisagem que eu crio fora com meu
movimento,
ou beleza acerba de um rosto já sem fronteiras,
a fenda na fronte apresentada ao lume implacável
de cada estrela; e fundura
para os sóis que a noite arremessa, enquanto a lua
paralisada
sustenta o seu abismo,
e as cobras fazem laços dentro da terra,
e nos sítios mais escuros irrompem rosas cor de esperma,
e ao alto ascendem os copos em cima das toalhas,
rutilando nos seus astros pequenos
como unhas,
os dedos inumeráveis, os rostos;
toda essa árvore de púrpura dos precipícios do mundo
até ao centro onde pulsam os frutos vivos
como pessoas,
como caras,
limpidamente
como
copos abruptos a transbordar de álcool.
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5.

Não se pode tocar na dança. Toda essa fogueira.
Uma paisagem temível vista depressa
desaparecida.
Porque é tudo sublevado para o olhar.
E é profundo quando vibra um colar de água
no coração da pedra muito limpa.
A dança de baixo para cima. Nunca
uma árvore pôde assim respirar tão entranhada.
Constelação que palpita
em sua imagem
de raízes carnais. E as grandes frutas imóveis
como rostos
contemplados aqui. O sono ferve na cabeça dos mortos.
Os diamantes. Os cabelos
torcidos como garras. Baixos. Violentos.
Ainda.
E o fogo arrasta as serpentes para fora. Alua move
as portas. O sangue brilha no fundo
da boca. Isto é o incêndio
dos braços entreabertos, das espáduas.
Porque tudo caminha inspirado em si mesmo.
Jardins em arco, as casas.
E a dança desde o umbigo puxa os tentáculos à volta.
O dia expulsa as estrelas
das poças. Que os chifres
estremeçam sob as lunações giratórias.
O leite nas tetas. O pêlo amansa.
Pode-se ver a onda a bater nas omoplatas. As coxas
rodando os seus lentos planetas que se afastam.
Da terra,
do meio. Explode a estação mais branca.
Branca no ano.
Vergam-se os quartos. E as caras
demenciais docemente quando aparecem
massacradas.
Onde a luz acaba e a treva toda se volta.
Uma camisa torácica
posta apanhada a cada clarão. Isso com as unhas
a luzir. Em cima os dedos nas mãos. As cobras
hipnóticas.
Dizem que o mel novo enlouquece as pessoas. A dança
arrasta os mortos. Simétricos,
fechados como laços,
como jóias.
Até às ressacas das paisagens que se movem
dia a dia. Pelos incêndios dentro dos animais. Solenes
pedras
sumptuárias. A dança
guiando as montanhas sobre as águas.
Navios cegos.
Branca floresta.


1977.
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1.

A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou
na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça recolhendo-a
de um lado e descrevendo-a de outro lado num sulco
vibrante “parecia um meteoro”
como se fosse muito simples e então a cabeça desaparecia “a lua”
a ferver a grande velocidade pelo céu dentro
“um buraco”
via-se apenas a intensidade “estávamos com medo pois aquilo
assemelhava-se a uma revelação” e foi quando ele apanhou a cabeça
outra vez
e era agora uma cabeça furiosa
“cheia de peso” dizia-se “a luz agarra qualquer coisa”
oh sim: “com toda a violência”
pensai num bocado de carne despedaçado entre as mandíbulas
de um tigre: e depois deixou cair esse rosto sustentado atrás
pela bela caixa craniana com aquele rastro de cometa
“que é isto?” perguntou-se — e pusemo-nos todos a pensar bastante
“havia ali um senso arcaico da paixão”
talvez uma coisa tão remota e bárbara como: o fausto:
o pavor:
a caça: “é um movimento uma forma” disse ele
“é preciso voltar ao princípio”
e então começámos a usar os olhos com a ferocidade das objectivas
sem truques capturando tudo selvaticamente
e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas
um caudal sumptuoso
cortado “era tão estranho!” pela ligeireza dos dedos abertos
delicado pentagrama a duas alturas
“uma estrela refractada” para falar do que se viu
na projecção do filme e então podia-se adiar tudo menos aquela ideia
de que “não digo beleza” de que uma força
impelia tudo e a rapidez criava formas
linhas de translação feixes
de desenvolvimento ao longo das paisagens redondas como
abismos
recorria-se ainda a imagens para devolver essa cabeça
ao fulgor da sua precipitação contra os olhos
a queda “como oxigénio a arder” e a fuga
e a correria em que voltava para subir e rodar
de um modo que dizíamos: “indomavelmente”
porque vistas assim as coisas eram de uma fatalidade total
e a irrevogável maneira que tinham de ser livres
soltas
impunes
— na sua firmeza: “inocentes” — isso fazia medo
e havia em nós “um estilo de ver” que nos arrastava
implacavelmente para a loucura e a alegria
“porque era preciso destruir tudo” sim “de extremo a extremo”
para encontrar “o centro” onde o calcanhar gira
e roda o corpo todo
o sítio talvez onde se formam as massas dos espelhos
de que saltam fortemente “os astros os rostos”
e não haver “exemplo” mas apenas uma forma rudimentar
desfechada
contra tudo aqui escavando achado o veio
a limpidez primeiramente: aquilo: a cabeça móvel apanhada
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2

Eis como que uma coisa como que nos interessa: destruir os textos.
Passa-se que:
o caçador vai à procura de cabeças. Que é como quem diz.
Traz cabeças faz um monte.
Um monte de cabeças intempestivas, vociferantes, cabeças rebarbativas.
Arruma tudo, limpa o ar só para elas, um monte grande
luzindo, sibilando assim, ovídeo
turbilhona.
Um monte de desenfreadas cabeças cheias de nós de cá para lá
no vídeo
com uma pressa faiscante.
Atulhadas de pequenas ideias assassinas assim: sibilando
a sua canção estereofónica.
Eis que é como que isso que é como que
é preciso desmanchar: fazer
uma paisagem centrífuga, porque a violência
alimenta-se de música,
música fervente. Electrochoque para os textos apoiados assim
como que em música como que
ali. Isso. Como que: o dínamo nas cabeças lírico-psicóticas:
truculentas — estragando.
Suadas. Soldadas a isto: a ideias frenéticas, como que
soldadas como que
às mãos, aos dedos todos: frenéticos; às garras.
É como que se faz aos textos: toda a destruição.
Pensamos que interessa varrer tudo muito bem:
não é nada com a atmosfera, não é nada que não seja
com destruir por conta
da paisagem escrita que começa sempre à volta de um orifício.
As estações como que trabalham naquilo de
trazer
para muito perto do orifício
a fruta toda os buracos os ovos as víboras os astros as pedras tudo
faiscando.
E o orifício.
E então e o orifício traga tudo. Como as cabeças ficam
faiscando nas mãos.
Queremos dizer que como que abanamos depressa as mãos.
Não se pode acreditar na beleza concentrada
da gramática
como que cheia de como que
força pura,
cintilação,
violência.
Destrói: esta paisagem eternamente em órbita em torno
deste eixo.
Este show treinado como um movimento da terra
com o seu furo incandescente no meio, destrói.
Empurrar as cabeças cheias de relâmpagos para todos os lados
como frases
com fósforo. Cortar aos pedaços.
Quando o vídeo brilha como uma janela como um lirismo
arrebatador. Deitar fora. Ver e marcar onde está o sangue, só.
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3.

Esta ciência selvagem de investigar a força
por dentro dos olhos:
a treva parada numa parte: do outro lado faiscando
todos os astros:
as obturações as
aberturas na carne: não sei ver nos livros a aparição do rosto
todo cercado por uma casa:
não conheço quando nasce a ribeira no meio:
quando nasce quando
a ribeira de uma montanha
no meio
brilhante:
a maldade da linguagem se o cinema mostra
as janelas das paisagens:
e essa forma repleta de passos para indagar:
e então é preciso outra maneira de poema: uma
espécie furiosa de pessoa comentando
com muito pormenor:
cabeças cheias de raiva e murmúrios no escuro:
a intensidade dos cabelos em volta dos cornos: e logo o poema
traz as coisas para o quarto: coloca
tudo mais perto do centro:
vê-se a teia que vai da fronte às coxas com os braços reluzentes
por cima
e no meio um remoinho cego:
o sexo: a estrela
tumefacta:
esta ciência é um movimento das mãos contra o espelho:
a parte de trás da cabeça onde vibra o meteoro: é
a onda aproximada: uma porta na sala
que fecha de estrela a estrela:
apenas o sangue e a testa um pouco louca entre os dedos:
copo de mármore:
planeta de aço:
uma flor rija ascensional com os pulmões chamejando
na terra:
essa velocidade que há na noite de lado a lado:
e a testa fervente abismada no mundo: e os pólos
do corpo:
clareira
cerrada à volta: esse modo secreto de tudo mexer
com uma finura viva:
não sei que dedos no estilo para queimar a cara forte
paralisada: a combustão
dentro da fotografia: a sibilante cara:
a cara:
e a maneira sagaz de trazer cada coisa até à própria labareda:
as mãos enxutas muito abertas: o
medo sem um só grito
em frente da noite cosida: camisa
redonda: e este saber
que vê passar os animais fundos e claros e tem
a sua loucura para alimento:
e a casa
para morrer e falar durante o sono e andar
de um canto para outro
com os dedos alumiando limpamente: o circuito magnético entre as
têmporas:
a raiz da ciência desde os pés até aos olhos
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