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Terra de Santa Cruz

1981

Adélia Prado

Adélia Prado

Adélia Luzia Prado Freitas é uma escritora brasileira. Seus textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único.

1935-12-13 Divinópolis, Minas Gerais, Brasil
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O Falsete

As autoridades têm olheiras
e estudada voz para os comunicados:
garantiremos a melhor solução entre as partes.
Quais partes? as pudendas?
Destas Deus já cuidou recobrindo de pelos.
Meu filho era bonzinho.
Nunca ia suicidar conforme disse o polícia.
Pus a mão na cabeça dele, estava toda quebrada,
mataram de pancada o meu filhinho.
As testemunhas sumiram,
perderam os dentes, a língua,
perderam a memória.
Eu perdi o menino.
“...Ele acolhia as turbas, falando-lhes do Reino,
e aos necessitados de cura devolvia a saúde.”
Palavras duras só para os mentirosos, os legistas
que atrelavam aos outros pesados fardos
que eles mesmos nem sequer tocavam...
Ó grito grande que eu queria gritar,
silvo que me esvaísse.
Certos tons, aves domésticas,
casa amarela com portão e flores me excitam,
mas não posso gozar. Tenho que pregar o Reino.
Quero um sítio, uma chacarazinha de nada,
o cristianismo não deixa,
o marxismo não deixa.
Ó grito grande, na frente dos palácios
episcopais e não:
O POVO UNIDO
JAMAIS SERÁ VENCIDO!
Minha piscina não é de lazer, disse o papa.
Não pretendo ser profeta, disse o bispo.
Que grosso cordão, que balde cheio,
que feixe grosso de coisas más.
Que vida incoerente a minha vida,
que areia suja.
Sou uma velha com quem Deus brinca.
De parelha com iras e vergonhas
meu apetite segue imperturbável,
carnes gordas, farinhas,
prelibo os legumes como a encontros carnais
e tenho medo da morte
e penso nela diuturnamente
como se eu fosse respeitável, séria,
comedida e frugal dama-filósofa.
Se alguém me acompanhar fundo um partido.
Derrubarei o governo, o papado,
dizimarei as casas paroquiais
e fundarei meu sonho:
num cerrado, inúmeros
desciam os frades com seus capuzes,
como aves marrons, pacificamente, procuravam um lugar.
Eu os acompanhei até que viram uma casa grande.
Tinha um grande fogão, uma grande mesa,
e todos foram entrando e acomodavam-se,
espalhando-se pela casa
como verdadeiros irmãos.
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Terra de Santa Cruz

Nas minhas bodas de ouro, esganada como os netos,
vou comer os doces.
Não terei a serenidade dos retratos
de mulheres que pouco falaram ou comeram.
Porque o frade se matou
no pequeno bosque fora do seu convento.
De outras vezes já disse: não haverá consolo. E houve:
música, poema, passeatas.
O amor tem ritmos que não são de tristeza:
forma de ondas, ímpeto, água corrente.
E agora? Que digo ao homem, ao trem, ao menino que
[me espera,
à jabuticabeira em flores, temporã?
Contemplar o impossível enlouquece.
Sou uma tênia no epigastro de Deus:
E agora? E agora? E agora?
Onde estavam o guardião, o ecônomo, o porteiro,
a fraternidade onde estava quando saíste,
ó desgraçado moço da minha pátria,
ao encontro desta árvore?
Meu inimigo sou eu. Os torturadores todos enlouquecem
[ao fim,
comem excrementos, odeiam seus próprios gestos
[obscenos,
os regimes iníquos apodrecem.
Quando andavas em círculos, a alma dividida,
o que fazia, santa e pecadora, a nossa Mãe Igreja?
Promovia tômbolas, é certo, benzia edifícios novos,
mas também te gerava, quem ousará negar, a ti
e a outros santos que deixam as bíblias marcadas:
“Na verdade carregamos em nós mesmos nossa sentença
[de morte.”
“Amai vossos inimigos.”
O que disse: “Quem crer viverá para sempre”, este também
balouçou do madeiro como fruto de escárnio.
Nada, nada que é humano é grandioso.
Me interrompe da porta a mocinha boçal. Quer mudas de
[trepadeira.
Meus cabelos levantam-se. Como um torturador eu piso
[e arranco
a muda, os olhos, as entranhas da intrusa
e não sendo melhor que Jó choro meus desatinos.
Sempre há quem pergunte a Judas qual a melhor árvore:
os loucos lúcidos, os santos loucos,
aqueles a quem mais foi dado, os quase sublimes.
Minha maior grandeza é perguntar: haverá consolo?
Num dedal cabem minha fé, minha vida e meu medo maior
[que é viajar de ônibus.
A tentação me tenta e eu fico quase alegre.
É bom pedir socorro ao Senhor Deus dos Exércitos,
ao nosso Deus que é uma galinha grande.
Nos põe debaixo da asa e nos esquenta.
Antes, nos deixa desvalidos na chuva,
pra que aprendamos a ter confiança n’Ele
e não em nós.
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Miserere

Eu desenhava no papel de seda uma flor de cinco pétalas
quando me ocorreu a vingança contra os donos do
[mundo.
Tentando versos com que vos narrar minha trama,
adormeci sentada, o queixo desabado no peito.
Coitada, diríeis, é aquela que vimos esbravejar no
[seminário?
Cismei que adoecia e procurei o médico.
Ele não foi perspicaz.
Auscultou, profissional, minhas cavidades
e prescreveu ginástica, redução de calorias, vida calma.
Doía tudo. Aqui dói, doutor, aqui também.
É certo que o senhor nunca deglutiu pedras,
mas, afianço-lhe, mesmo a água que bebo
é indigesta coisa sólida no meu bucho.
Ele precaveu-se, intimidado pela minha fluência,
pelo manuseio intimorato que dispenso às palavras.
Dependendo da atividade intelectual,
da sensibilidade de cada um,
tais sintomas ocorrem, minha senhora.
E mostrou as garras, defensivo,
mais uns grãos de enfado.
Eu não estava doente. E estava muito.
O medo de morrer, habitualmente grande,
trinta vezes aumentado.
Comecei a rezar no registro dos náufragos:
Perdoa-me, Senhor. Lembra-Te de que és meu Pai.
Como gostaria de nascer de novo
e começar tudo generosamente.
Olha pelos filhos que deixarei,
por meu marido que talvez não se case mais.
Onde achará, neste lugar pequeno, outra mulher que lhe
[ofereça
tantos motivos pra mortificar-se?
Passeava na casa, amargando a saudade prévia dos seus
[cantos.
Doía tudo, até que,
até que nada, não dói mais.
Recolhi-me ao corriqueiro estatuto
de comer, dormir, lavar-me,
recuperado o saudável desejo de que se fodam bem
determinadas pessoas em suas empresas.
Continuo passando a língua no molar obturado,
desgostosa, porque se não sou eu a cuidar da cozinha,
uma lata de óleo é a conta de dois dias.
Confesso-vos: quando comecei a escrever
o que eu queria era fazer um teatro.
Fostes salvos do sacrifício de uma opinião
por este grito que me interrompeu:
acode aqui, dona Wíllia, o seu cachorro deu convulução!
Judith entrou de noite no acampamento inimigo
e decapitou Holofernes.
Pergunto-vos, sem que nos ouçam os fracos e os ímpios:
poderia eu também?
Não durmo porque nada se exaure, requerendo atenção,
matança, oferta de comida, futuros de paz, empregos;
e eu tenho um corpo talhado para prazeres só e guerra.
Posso? Comer? Dormir? Gostar de homens?
Louvar-Vos — em perfeita alegria — neste tempo
[cinzento e pegajoso?
Não é possível conseguir a atenção de uma cidade inteira
— há misteres inadiáveis nos banheiros,
nas casas com menino pequeno —
nem silêncio. Há os aparelhos eletrônicos e as línguas
[compridas.
Mas duzentas pessoas numa sala,
com olhos fixos na cena,
verão que a vida é doida, doida,
que o ser humano até hoje está sem calças,
que Deus é bom e duro.
Que Jesus Cristo quando ri alucina as pessoas
e atrai a todos quando diz: AMAI-VOS.
Eu estou apaixonada.
Ó meu Deus, me ajuda a escrever um drama.
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Querido Irmão

Como é possível, disse meu irmão,
nem um amigo levantou sua voz em meu favor.
Não sei para onde ir, sinto um desterro.
Vamos a nosso pai, pedi.
Queixemos a nossa mãe o que nos fazem.
Já morreram, ele disse, como nos ouvirão?
Nosso pai, falei, após enterros, desastres,
após extrair os dentes, sentava e comia.
Escuta a mãe cantando:
o Averno ruge, enfurecido,
altar e trono quer destruídos...
Temos poderes para evocar um campo,
dilatar ao infinito a curta vida, em mil e uma noites de
[lembranças:
se nos proteges, ó mãe potente,
contra a inimiga, cruel serpente...
Um dia disseste: não vou no açougue não. E te enfurnaste.
Nosso pai disse: vai porque vai, seu estudantezinho.
E foste. Porque nosso pai bramia em seu brutal amor.
Tens de nossa mãe poucas lembranças,
mas eu te digo, foi corajosa e triste. Seríamos fundadores.
de mil soldados não teme a espada...
cantava ela, como ordem e predição.
Somos órfãos e não.
Teu terninho marrom foi dona Zica quem fez,
dona Zica Peru
que foi ser freira, lá longe...
Teu primeiro retrato tem um olho zarolho.
Magnificat! Magnificat!
Os olhos de nossa mãe resplandeciam:
tiraste dez na escola? Introibo ad altare Dei,
qual é a resposta?
Ajoelha e jura que nunca mais farás isto.
Agora come. Para de chorar e come, ordenava nosso pai,
as bravatas católicas concitantes.
Tan-ta-ra-ran ta-ra-ran tan-tan,
como em festa de igreja, em procissão de enterro,
a banda atrás de tudo,
a grande dor musicada, o grito agarrado em Deus,
na orla do manto da Virgem.
Uma fé humilde e engraçada, uma fé verdadeira.
Somos órfãos?
Pois sim, pois não. A medida da vida é o sofrimento.
Alegra-te, meu irmão. Que belo destino o nosso,
semear em lágrimas o chão.
Numa bandeja de prata, foi-se a cabeça de João.
Que a nossa role também,
que os anjos digam amém
e restemos nus.
No vento, na chuva, na casa destelhada,
na cova aberta na terra onde estão nossos pais
esperando a corneta,
esperando a banda, a trombeta, esperando os filhos
pra pôr na fila com eles
e entrar com eles no céu.
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Móbiles

Que belo poema se poderia escrever.
Coisas espicaçadoras não faltam,
hortigranjeiros esperando transporte
e tudo que é necessário:
tenho que fazer o almoço.
Ou supostamente ético:
batia gente na porta,
Tialzi no corador virava as calcinhas todas
de modo a esconder o fundo.
Uma laranjeira rebrota,
preciosa árvore do mato dá espinhos,
folhinhas miúdas, flores cujas pétalas
são fios agrupados em contas de odorífero ouro.
Elas explicam o mundo como os pintinhos explicam,
perfeitos até as unhas, emplumados, vivos,
invencível delicadeza
que homem algum já fez com sua mão.
Surpreendido de noite com a mão nos ouvidos,
o moço dizia: não durmo, é a música do bar,
este galo seu que canta fora de hora.
Mentira. É por causa da vida que não dorme,
da zoeira sem fim que a vida faz.
Quer casar e não pode,
seu emprego é mau,
seu pâncreas, ingrato e preguiçoso.
Eu me casei e tenho a mesma medida de aflição.
O dia passa, a noite, saio da sombra e digo:
é só isso que eu quero,
ficar no sol até enrugar o couro.
Mas vai-se o sol também atrás do morro,
a noite vem e passa sobre mim
que longe de espelhos alimento sonhos
quanto a viagens, glórias,
homens raros me ofertando colares, palavras
que se podem comer, de tão doces,
de tão aquecidas, corporificadas.
A parreira verga de flores,
eu durmo inebriada,
achando pouca a beleza do mundo,
ansiando a que não passa nem murcha
nem fica alta, nem longe,
nem foge de encontrar meu duro olhar de gula.
A beleza imóvel,
a cara de Deus que vai matar minha fome.
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