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Esparsos

Florbela Espanca

Florbela Espanca

Florbela Espanca, batizada como Flor Bela de Alma da Conceição Espanca, foi uma poetisa portuguesa.

1894-12-08 Vila Viçosa
1930-12-08 Matosinhos
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A luz ignóbil

A luz ignóbil, informe,
É um diamante enorme
Engastado no azul duma safira...
A ignóbil luz
Inunda toda a rua...

O Almas de mentira,
Almas cancerosas,
De virgens que nunca se curvaram
Á janela dos olhos pra ver rosas
E cravos e lilases e verbenas...

Ó Almas de grangrenas,
Almas ’slavas, humildes, misteriosas,
Cruéis, alucinantes, tenebrosas,
Todas em curvas negras como atalhos,
Feitas de retalhos,
Agudas como ralhos
Cortantes como gritos!
Almas onde se perdem infinitos!...

Almas trágicas de feias
Que nunca acreditaram
Em beijos e noivados...
E que desperdiçaram
Quimeras aos braçados
E sonhos as mãos cheias!...

ò almas de assassinos que morreram
E riram e mataram!
Almas de garras que se esclavinharam
Em carnes virgens por sensualidade!

Almas de orgulho e de claridade
Talhadas em diamante!
Almas de gato-tigre, almas de fera!

O ébrios da quimera
O cisternas sem fundo!
Que trazeis nos olhos macerados
Seivas de Primavera...
Todo o horror do mundo!...

Ó Almas de boémios, rutilantes,
Que Não sabem que há sol,
Almas esfuziantes
Que atravessam o mar como um farol!

Ó Almas de poetas, assombradas,
Almas sagradas
De tanto adivinhar!
Almas maravilhadas
De arder em labaredas
Sem nunca se queimar!

Almas de velhas que querem agradar...
De amantes que Não cessam de enganar...
Ó Almas de ladrões
Onde passam, a rir, constelações!

Almas de vagabundos
Onde há charcos e lagos
Pântanos e lamas...
Onde se erguem chamas,
Onde se agitam mundos,
E coisas a morrer...
E sonhos... e afagos...
Almas sem Pátria,

Almas sem rei,
Sem fé nem lei!
Almas de anjos caídos,
Almas que se escondem pra gemer
Como leões feridos!

Vinde todas aqui á minha voz
Que o mundo é ermo
E estamos sós.

Vós todas que sois iguais a mim
O Almas de mentira!
Vinde á minha janela, á minha rua
Ver a ignóbil luz,
A luz informe,
O diamante enorme,
Engastado no azul duma safira...

Vai passar certamente a procissão...
Na minha rua vai um riso franco
Um riso de alvorada!
Há dentro dela tudo quanto é branco!
É urna asa de pomba, desdobrada!...

Brancos os lilases e as rosas...
Mudou-se em prata o oiro das mimosas
E há lirios as molhadas,
Aos feixes, ás braçadas...
Tudo branco, Meu Deus!

Lá vêm os anjos todos de brocado,
De olhos ingénuos e resplendor...
O ar tem o sabor
Dum grande morangal
Que nunca foi tratado...

Olhem as virgens, olhem! Que sorriso!
Vieram do Paraíso
mesmo agora...
E todo o ar
Parece acabadinho de lavar
Ao despontar da aurora...

Caem do céu miríades de penas
Leves como aves...
Dulcíssimas, suaves...
Curvam-se as açucenas...

Em mãos de prata lá vêm os Evangelhos
As casas, ao luar, são mais pequenas
Puseram-se — quem sabe?... — de joelhos...

O ar é virginal...
Um templo de cristal
Onde, rodopiando,
Passam brandas, arfando,
Como asas de pombas sobre as eiras,
O estandarte real
E pendões e bandeiras!...

Quem vem?...
Esvaiu-se num sopro a procissão...
Silencio! Nada! Ninguém!
Pasmo de coisas mortas!
Alucinação!
E o meu coração
Põe-se a bater às portas...

E não abre ninguém!
Ninguém! Ninguém! Ninguém!...
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