Canto ao Homem do Povo, Drummond

I
(Não) Era preciso que, nem poeta, nem maior, porém um tanto exposto à galhofa, girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando a viver como na poética e essencial atmosfera de sonhos translúcidos.
Era preciso que este pequeno cantor mudo, de ritmos inexistentes, vindo de lugar-nenhum, onde nem nunca se usa gravata, e raro alguém é polido, e a opressão é desestranha, e o heroísmo se banha, também, em ironia, era preciso que atual velho vinte-e-tantos-tombos, preso à tua "gauchice" por filamentos de ternura e vida, viesse ousar falar-te e, fruto imaturo, te visitasse para dizer-te alguns nadas, sobcolor de despoema.
Para dizer-te como os nós te amamos e que nisso, como em nada mais, nossa gente não se parece com qualquer gente do mundo - exclusive os que perderam bondes e esperanças, e voltam pálidos para casa, e cujos corpos transigem na confluência do amor, iludindo a brutalidade e a brutal idade, e que, secretamente, pronunciam tuas palavras de vida e sonho.
Bem sei que o discurso, acalanto freguês, não te esmorece, e esta tua vivência é tua entrevista aos hebdomadários. Não é a saudação dos entusiasmados que te ofereço. Eles existem, mas é a de gente comum em mundo incomum.
Nem faço muita questão da anti-matéria de meu canto, tão abaixo de ti, como uma letra mal sucedida, mandada por vida real ao escritor de todas as cartilhas.
Falam por mim sei quantos, sujos de inexpressåo e gente, levados a refletir, ainda que microssegundo, que te percorreram papel adentro e, em meio ao Palácio das Jóias, descobriram anéis que lhes serviam e se sentiram imensamente ricos.
Falam por mim os que simplesmente simples de coração nunca ouviram falar de ti, ou si, a não ser por adjetivos e nunca por eles mesmos, líricos ou cismarentos, irresponsáveis ou patéticos, cariciosos ou loucos, e os que não chegam a ser nada disso.
II
A noite dissolve os homens, e não te apaga, não, a visão.
A noite é mortal, mas já não o és, mesmo despido de fardões que não te caem bem, deselegante predestinado, condenado à Eternidade, independente de certidões.
Assim, perdida a sábia infância, acumulas a noite na calvície plena e adquires a dimensão do grande e o pedaço vital da trajetória.
E te fazes em frases.
E então sentimos a noite.
Não como trevas, mas como fonte natural de nostalgia e brisa, como se ao contato da tua mensagem voltássemos ao país secreto onde dormem meninos ambiciosos de soltar coisas ocultas no peito.
III
Vazio de sugestões alimentícias, matas a fome dos que foram (ou não) chamados à ceia celeste ou industrial. E notas na toalha da mesa, em plena janta, impurezas no branco - lição de coisas que a vida te ensinou.
IV
E agora, Carlos? Não sossegues.
Teus ombros suportam o mundo, embora tenhas apenas duas mãos e a poesia seja, definitivamente, incomunicável, teu verso é nossa consolação e cachaça.
Oitenta por cento de ferro nas almas e brejo e vontade de amar doem, e o tempo é matéria, definitivamente.
V
Fazendeiro aéreo, habilitado para a noite, carregas no bolso viola eternamente encordoada. És apenas um homem e teu presente inunda nossa vida inteira.
VI
No meio do caminho tinha uma retina que enxergava a pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento.
A pedra que ontem não vi hoje seria avalanche.
Ela repousa na vida, sem esconderijo, enxergada.
No meio do caminho tinha uma retina.
VII
E, ao contrário do que dizes, todos os meninos saltam de tua vida, a restaurar as suas.
Suspeitaste o velho em ti? Sabe o sábio que és, com tuas rugas e tua calva.
Foi bom que te expusésses: meditavas e meditávamos.
E tudo dizias... (ó palavras gastas, entretanto salvas, ditas de novo).
Poder de mais-que-humana voz, inventando novos caminhos, dando sopro aos exaustos; dignidade digna, amor profundo, crispação de ser humano, árvore firme ante desastres ecológicos, ó Carlos, meu e nosso amigo, tua vida e poesia FABRICAM a estrada de pó e esperança.

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