Herberto Helder
Herberto Helder de Oliveira foi um poeta português, considerado por alguns o 'maior poeta português da segunda metade do século XX' e um dos mentores da Poesia Experimental Portuguesa.
1930-11-23 Funchal
2015-03-23 Cascais
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Os Ritmos 7
Ele lembra-se de setembro, o mês.
Setembro é um mês obrigatório.
Chegara para alguém o tempo do conhecimento.
Os ladrões são assim: espreitam, esperam, a ver como é.
Depois, do conhecimento dos outros instituem uma parte do seu conhecimento próprio.
Pode-se pensar que são coleccionadores de selos, acumuladores de riqueza, espíritos vorazes intensamente ocupados na extravagância dos espectáculos.
E emocionam-se, deslumbram-se, sofrem — monstros hábeis metendo tudo nas algibeiras.
Vamos rir: se calhar, aquilo de nada lhes servirá.
Alguém diz: tornam-se maiores as dimensões da realidade.
E o coleccionador, perdido em espaços demasiado grandes para si, diz devagar, muito devagar: merda.
Ninguém ouve, e ele mantém o seu orgulho de guardador de coisas, ele, o das vastas dimensões da realidade.
Porque é que em setembro acontecem coisas?
É por causa da luz.
O terror, por exemplo, é de setembro.
As noites rebentam inesperadamente no que pensamos ser o meio da luz do mês de setembro.
A morte diverte-se muito em setembro.
Vejamos: as pessoas estão a dormir, em setembro, e acordam de súbito, apavoradas.
Tiveram um sonho premonitório.
As pessoas julgam que a vida treme nelas, riem de alegria, têm o corpo bronzeado, cantam, levantam a cabeça para a luz.
É porque se está em setembro.
Então aprendem uma coisa qualquer, roubam-na, coleccionam-na, aumentam as dimensões da realidade.
E mesmo que digam baixinho: merda — não se livram do seu álbum de selos.
Estão tramadas.
Ele sabe isso muito bem.
De setembro, o mês, conhece todas as artimanhas.
Agora ri, quando as pessoas fáceis dizem: no verão, em setembro.
Elas contam as historiazinhas da praia, da alegria de viver junto ao mar, das roupas leves e claras.
Bem: nunca parou de enriquecer, ele, por obrigação.
E então chegou setembro, o obrigatório.
Nessa altura já ele tinha os braços e as pernas muito grandes e tentava metê-los no espaço, ao mesmo tempo que o resto do corpo.
Estava à procura do último ritmo, e as coisas iam menos mal.
Mas a mais nova das irmãs, com a malevolência dos seus doze anos, estava a comer uma ameixa, com os olhos sobre a mesa de estudo.
Setembro já começara a encher-se de assombro, por causa dos doze anos dela.
Embora o mês principiasse por ter uma qualidade especial de expectativa, e os dias se mudassem uns aos outros, mantendo uma subtil tensão — só nesse sábado branco é que o tumulto se levantou no meio da casa.
A irmã levantou os olhos da mesa, deixou cair a ameixa e ficou a olhar com espanto a parede em frente.
Depois, em setembro, o rosto dela correu vertiginosamente em direcção ao pânico, e ela deu um grito.
Tinha chegado o tempo do conhecimento.
Rouba o teu bocado, disse o pequeno monstro.
Vieram pessoas, vieram as mães todas: a velha, a outra a seguir, e a outra, e as novas mas ainda assim mais velhas.
Arrastaram a irmã para um quarto do fundo, e esconderam-na.
O espectador disse: agora é ela a vítima, foi apanhada de súbito pelo conhecimento.
E perguntou: o que é que cresceu nela, a comedora de ameixas aos doze anos?
Os dias de setembro unem-se uns aos outros, sob a enorme luz da tarde.
As mães todas correm pelos corredores, falam baixo, pretendem tornar inalcançável para ele os doze anos da comedora de ameixas.
Porque ele fica junto da mesa, à procura da ameixa mordida que rolou para o soalho.
Mas ele próprio já sabia demais para convencer-se de que procurava no chão ameixas mordidas.
Caberia isso na cabeça de alguém?
Um criminoso de oito anos procura, em setembro, quando a irmã grita e é levada para o inacessível.
Digo: um criminoso de oito anos perde tempo à procura de uma ameixa? quando uma rapariguinha de súbito cai em pleno espaço do sacral e as sacerdotisas se alvoroçam à sua volta, dizendo: chegou o tempo.
Levam-na para o inacessível, para o fundo da casa.
Que procuras tu, farejador?
Comigo foi assim, pensa ele: golpeei o braço, expus-me, criança doce e dramática, em frente do espanto e da comoção das mulheres, caí no abismo, ressuscitei sob a delicadíssima atenção feminina, cresceram-me os braços e as pernas, insinuou-se em mim um novo ritmo, soube que ultrapassei um perigo e fiquei de uma outra maneira diante de tudo.
Depois diz: aconteceu-lhe o mesmo a ela, mas de um modo particular.
Deve existir um sinal.
Havia no soalho, junto da cadeira, uma pequena mancha de sangue.
E ao longo do quarto, até à porta, um rasto de pingos de sangue.
E havia no corredor, ao longo do corredor — havia sangue.
Acerca das ameixas já eu sabia tudo, pensa ele.
Acerca de sangue de golpes no braço, pensa ele, já eu sabia tudo.
Quanto ao sangue de uma irmã de doze anos que de repente pára de comer ameixas e olha a parede e fica em pânico e grita e atrai as mulheres e é arrastada para o fundo da casa — começo a saber uma pequena coisa.
Tenho medo.
Quando uma mulher tiver fluxo de sangue, e o sangue lhe manar do corpo, ficará sete dias em reclusão, na impureza das suas regras.
Todo aquele que a tocar ficará imundo até à tarde.
O leito em que ela se deitar ficará imundo, e o sítio em que se sentar ficará imundo.
Todo aquele que tocar no seu leito deverá limpar as vestes, e lavar-se em água, e ficará imundo até à tarde.
Todo aquele que tocar num móvel, seja qual for, onde ela se tenha sentado, deverá limpar as vestes, e lavar-se-á em água, e ficará imundo até à tarde.
Se um objecto se encontrar no leito ou no sítio onde ela se sentou, aquele que lhe tocar ficará imundo até à tarde.
Se um homem se deitar com ela, atingi-lo-á a impureza das regras.
Ficará imundo durante sete dias.
O leito onde se deitar ficará imundo.
Principiou assim um tempo novo, uma coisa difícil a favor ou contra a qual ele não possuía qualquer arma.
Se se passasse pelos dias brancos e lisos, talvez nada se notasse, mas ao fundo deles vibrava o ambíguo e cerrado transe feminino.
O crescimento dramático e obscuro da irmã perpetuava-se algures, era o intangível e terrível remate desses dias tão planos.
Deve-se acreditar nos arquitectos, na tradição?
É verdade que uma casa se construíra e nela se instalara um campo de forças, de linhas cruzadas e tensas onde assentava o equilíbrio.
Podia-se então, sob a luz peremptória de setembro, averiguar o valor das pequenas coisas, o sentido de algumas transformações e, embora nada disso se fizesse sem alguma surpresa e sofrimento, ah, ressuscitava-se, sim, ressuscitava-se sempre.
Na verdade, não existia mácula nenhuma.
Metamorfoses, se as havia — e havia — davam-se dentro do próprio sistema de que se fazia parte.
Já se falara em terror?
Sim, falara-se na terra que treme debaixo dos pés, no medo e na confusão.
Não se falara contudo em mácula.
O que estava dentro de uma pessoa crescia, era certo, crescia por vezes espectacularmente, tornava estranhos e inóspitos, por um tempo, o lugar e o estilo — mas recuperava-se tudo, e pensava-se depois: descubro novos dons dentro de mim, eu cresço.
Mas que o mundo crescesse, ele, que o mundo fosse tão brutalmente activo, e não matéria apenas expectante à espera do nosso talento que crescia, isso, ah isso.
Isso não, não se sabia.
Tinha-se medo.
Havia sangue — um sangue corruptor.
Afinal, o trabalho das mulheres era o da ocultação da sua mácula.
Não se tratava de uma riqueza que fosse necessário decifrar, fosse difícil pela sua mesma natureza, mas cujo singular valor se relacionava obscuramente com o crescimento de uma criança.
As mulheres eram secretamente impuras, inspiravam o terror.
Eis que ela grita, aquela que agora se inicia, mas que em si trazia os húmidos e soturnos germens do mal, todas as virtualidades demoníacas.
E se olhares para o alvoroço feminino, com o teu coração tão acessível ao patético, onde o gesto e o movimento curvo se gravam pela impressividade da graça e da inspirada reticência — se olhares assim, aprendiz, ficas a saber que as mulheres continuam o seu trabalho de surpreendentes tecedeiras do milagre.
Mas descobriste outra coisa: que há uma mentira.
Descobriste isto: as mulheres nem roçam por ti.
Nunca soubeste nada, não decifraste o menor sinal, elas sempre estiveram a uma inimaginável distância.
Se perguntasses: o que há em setembro?, apareceriam todas as mentiras.
Maria: a roupa seca mais depressa; Francisca: é o melhor tempo de praia; Filipa: a luz estonteia; Luísa: pode-se dormir ao ar livre; Merícia: custa a adormecer.
Mas em setembro aparece a menstruação.
E ele anda pela casa, em volta daquele círculo de treva ardente, rondando a sagrada vileza das mulheres.
Mas há nessa espécie de desavinda sede de conhecimento, ou nessa angustiosa fascinação, uma repugnância e um medo próximos do amor, um silêncio crispado e atento que quase se abre num louvor incoerente.
Todo aquele… todo aquele que tocar… ficará imundo…
Sim, arrebatam-na, e ela cresce, cresce.
Que é isso de pernas e braços que se põem ridiculamente a sair do seu tamanho, como tomados de um ímpeto próprio, comparado com aquilo que nem se nomeia, não se pode ver, e é sagrado e intocável pelo poder da sua própria maldição?
Uma irmã come ameixas, e isso é mentira.
Ele olhou-a, a ela, e olhou as outras raparigas, e a mãe, e a avó.
Aprendia, pensava ele, aprendia.
Tocava-lhes nos vestidos, via-as pentear-se, andar, falar, calarem-se.
O grito, sim, o grito era o limiar: a primeira e última verdade.
Depois, a treva.
E a irmã estava de repente no seu lugar — a ausência perfeita.
Em setembro, as crianças não dormem.
São rapazinhos de rosto atemorizado, o olhar aberto e imóvel, as mãos espalmadas sobre a colcha.
Talvez pudessem ficar assim, até serem homens, e o que cresceria então neles?
Quem sabe se apenas os cabelos e as unhas?
Mas ele levanta-se no meio da sua noite, um destes rapazinhos, porque afinal existe a força do amor.
Levanta-se para novos corredores e escadas — e anda como um sonâmbulo comido pela febre.
Que o crime é uma vocação — sim, diga-se dessa maneira; diga-se que o crime é uma vocação, do mesmo modo que o conhecimento.
Que são uma só coisa, isso; que o crime e o conhecimento são uma só coisa: uma vocação.
Ele levanta-se na sua noite, cheio de confuso amor, e precipita-se na sua silenciosa vocação: o crime do conhecimento.
E assim se aproxima, tacteando, com as mãos trementes de febre, dos lugares sagrados.
Bem pode ser que haja setembro, luz, coisas aparentemente fáceis, nenhuma dúvida.
Mas agora é sempre noite, sempre um fervor culpado, a descoberta da violação.
Pode-se falar de alegria?
Pode.
É disso mesmo, é de uma monstruosa alegria aquilo de que se fala.
Assim se caminha pelos corredores e quartos, pelo equívoco das velhas arquitecturas, e a inspiração é esta: uma alegria cujas dimensões são ainda imperscrutáveis.
Não se conte isto em tempo: foi muito tempo, ou foi muito pouco.
Não há tempo.
Porque esta alegria, este amor, este medo que anda, esta violação servida por minúcias mesquinhas, estão prontos para o muito ou o pouco tempo.
Exerce-se, e nisso se basta.
É uma aranha, tem as virtudes inteligentes, miúdas e tenazes da aranha.
Aquele rapazinho que fora apanhado pelo espanto e o terror, que se deitara de mãos abertas como fulminado, e estava pálido e já não sabia nada, esse, sim, esse.
É desse que se fala.
Pois levantou-se, e agora procura, cada vez mais perto, mais perto.
É ele.
E um dia então descobre um pano manchado de sangue menstrual e mete-o debaixo da camisa, contra a sua própria carne.
Parece que não chegou a deixar a cama, porque podemos encontrá-lo tal como estava: deitado de mãos estendidas, respirando com a boca entreaberta, e o olhar fixo no tecto.
Talvez um resto de sorriso fugindo dos lábios, ou o princípio de um sorriso.
Mas agora é ele que desaparece, cerra-se, corta todas as pontes que poderiam conduzir ao seu segredo.
Fica só.
Não atravessem corredores, nem subam ou desçam escadas.
Nunca o encontrarão.
Lentamente, a mão que talvez se julgasse adormecida sobe da colcha.
Nunca esteve tão acordada, nunca foi tão forte — aquela mão de rapazinho deitado.
Desabotoa a camisa — ela, a mão, a mão que sabe — e tira o pano para fora.
É sobre um rosto de olhos fechados que essa mão parece voar docemente, com o pano vermelho bem agarrado.
A mão desce sobre o rosto, e o que se poderia ver seria um fremir de narinas, e um tremer de lábios.
O odor tão vivo daquele sangue morto enche-o, passa pelo olfacto e enche-o turvamente.
Sim, sim, também isso, também isso é verdade: um beijo — o beijo do amor.
E, pelas pálpebras fechadas, lágrimas para que não há nome.
Quando ele abre os olhos, talvez ninguém saiba, mas abre-os para a alegria — a mais terrível das alegrias.
Setembro é um mês obrigatório.
Chegara para alguém o tempo do conhecimento.
Os ladrões são assim: espreitam, esperam, a ver como é.
Depois, do conhecimento dos outros instituem uma parte do seu conhecimento próprio.
Pode-se pensar que são coleccionadores de selos, acumuladores de riqueza, espíritos vorazes intensamente ocupados na extravagância dos espectáculos.
E emocionam-se, deslumbram-se, sofrem — monstros hábeis metendo tudo nas algibeiras.
Vamos rir: se calhar, aquilo de nada lhes servirá.
Alguém diz: tornam-se maiores as dimensões da realidade.
E o coleccionador, perdido em espaços demasiado grandes para si, diz devagar, muito devagar: merda.
Ninguém ouve, e ele mantém o seu orgulho de guardador de coisas, ele, o das vastas dimensões da realidade.
Porque é que em setembro acontecem coisas?
É por causa da luz.
O terror, por exemplo, é de setembro.
As noites rebentam inesperadamente no que pensamos ser o meio da luz do mês de setembro.
A morte diverte-se muito em setembro.
Vejamos: as pessoas estão a dormir, em setembro, e acordam de súbito, apavoradas.
Tiveram um sonho premonitório.
As pessoas julgam que a vida treme nelas, riem de alegria, têm o corpo bronzeado, cantam, levantam a cabeça para a luz.
É porque se está em setembro.
Então aprendem uma coisa qualquer, roubam-na, coleccionam-na, aumentam as dimensões da realidade.
E mesmo que digam baixinho: merda — não se livram do seu álbum de selos.
Estão tramadas.
Ele sabe isso muito bem.
De setembro, o mês, conhece todas as artimanhas.
Agora ri, quando as pessoas fáceis dizem: no verão, em setembro.
Elas contam as historiazinhas da praia, da alegria de viver junto ao mar, das roupas leves e claras.
Bem: nunca parou de enriquecer, ele, por obrigação.
E então chegou setembro, o obrigatório.
Nessa altura já ele tinha os braços e as pernas muito grandes e tentava metê-los no espaço, ao mesmo tempo que o resto do corpo.
Estava à procura do último ritmo, e as coisas iam menos mal.
Mas a mais nova das irmãs, com a malevolência dos seus doze anos, estava a comer uma ameixa, com os olhos sobre a mesa de estudo.
Setembro já começara a encher-se de assombro, por causa dos doze anos dela.
Embora o mês principiasse por ter uma qualidade especial de expectativa, e os dias se mudassem uns aos outros, mantendo uma subtil tensão — só nesse sábado branco é que o tumulto se levantou no meio da casa.
A irmã levantou os olhos da mesa, deixou cair a ameixa e ficou a olhar com espanto a parede em frente.
Depois, em setembro, o rosto dela correu vertiginosamente em direcção ao pânico, e ela deu um grito.
Tinha chegado o tempo do conhecimento.
Rouba o teu bocado, disse o pequeno monstro.
Vieram pessoas, vieram as mães todas: a velha, a outra a seguir, e a outra, e as novas mas ainda assim mais velhas.
Arrastaram a irmã para um quarto do fundo, e esconderam-na.
O espectador disse: agora é ela a vítima, foi apanhada de súbito pelo conhecimento.
E perguntou: o que é que cresceu nela, a comedora de ameixas aos doze anos?
Os dias de setembro unem-se uns aos outros, sob a enorme luz da tarde.
As mães todas correm pelos corredores, falam baixo, pretendem tornar inalcançável para ele os doze anos da comedora de ameixas.
Porque ele fica junto da mesa, à procura da ameixa mordida que rolou para o soalho.
Mas ele próprio já sabia demais para convencer-se de que procurava no chão ameixas mordidas.
Caberia isso na cabeça de alguém?
Um criminoso de oito anos procura, em setembro, quando a irmã grita e é levada para o inacessível.
Digo: um criminoso de oito anos perde tempo à procura de uma ameixa? quando uma rapariguinha de súbito cai em pleno espaço do sacral e as sacerdotisas se alvoroçam à sua volta, dizendo: chegou o tempo.
Levam-na para o inacessível, para o fundo da casa.
Que procuras tu, farejador?
Comigo foi assim, pensa ele: golpeei o braço, expus-me, criança doce e dramática, em frente do espanto e da comoção das mulheres, caí no abismo, ressuscitei sob a delicadíssima atenção feminina, cresceram-me os braços e as pernas, insinuou-se em mim um novo ritmo, soube que ultrapassei um perigo e fiquei de uma outra maneira diante de tudo.
Depois diz: aconteceu-lhe o mesmo a ela, mas de um modo particular.
Deve existir um sinal.
Havia no soalho, junto da cadeira, uma pequena mancha de sangue.
E ao longo do quarto, até à porta, um rasto de pingos de sangue.
E havia no corredor, ao longo do corredor — havia sangue.
Acerca das ameixas já eu sabia tudo, pensa ele.
Acerca de sangue de golpes no braço, pensa ele, já eu sabia tudo.
Quanto ao sangue de uma irmã de doze anos que de repente pára de comer ameixas e olha a parede e fica em pânico e grita e atrai as mulheres e é arrastada para o fundo da casa — começo a saber uma pequena coisa.
Tenho medo.
Quando uma mulher tiver fluxo de sangue, e o sangue lhe manar do corpo, ficará sete dias em reclusão, na impureza das suas regras.
Todo aquele que a tocar ficará imundo até à tarde.
O leito em que ela se deitar ficará imundo, e o sítio em que se sentar ficará imundo.
Todo aquele que tocar no seu leito deverá limpar as vestes, e lavar-se em água, e ficará imundo até à tarde.
Todo aquele que tocar num móvel, seja qual for, onde ela se tenha sentado, deverá limpar as vestes, e lavar-se-á em água, e ficará imundo até à tarde.
Se um objecto se encontrar no leito ou no sítio onde ela se sentou, aquele que lhe tocar ficará imundo até à tarde.
Se um homem se deitar com ela, atingi-lo-á a impureza das regras.
Ficará imundo durante sete dias.
O leito onde se deitar ficará imundo.
Principiou assim um tempo novo, uma coisa difícil a favor ou contra a qual ele não possuía qualquer arma.
Se se passasse pelos dias brancos e lisos, talvez nada se notasse, mas ao fundo deles vibrava o ambíguo e cerrado transe feminino.
O crescimento dramático e obscuro da irmã perpetuava-se algures, era o intangível e terrível remate desses dias tão planos.
Deve-se acreditar nos arquitectos, na tradição?
É verdade que uma casa se construíra e nela se instalara um campo de forças, de linhas cruzadas e tensas onde assentava o equilíbrio.
Podia-se então, sob a luz peremptória de setembro, averiguar o valor das pequenas coisas, o sentido de algumas transformações e, embora nada disso se fizesse sem alguma surpresa e sofrimento, ah, ressuscitava-se, sim, ressuscitava-se sempre.
Na verdade, não existia mácula nenhuma.
Metamorfoses, se as havia — e havia — davam-se dentro do próprio sistema de que se fazia parte.
Já se falara em terror?
Sim, falara-se na terra que treme debaixo dos pés, no medo e na confusão.
Não se falara contudo em mácula.
O que estava dentro de uma pessoa crescia, era certo, crescia por vezes espectacularmente, tornava estranhos e inóspitos, por um tempo, o lugar e o estilo — mas recuperava-se tudo, e pensava-se depois: descubro novos dons dentro de mim, eu cresço.
Mas que o mundo crescesse, ele, que o mundo fosse tão brutalmente activo, e não matéria apenas expectante à espera do nosso talento que crescia, isso, ah isso.
Isso não, não se sabia.
Tinha-se medo.
Havia sangue — um sangue corruptor.
Afinal, o trabalho das mulheres era o da ocultação da sua mácula.
Não se tratava de uma riqueza que fosse necessário decifrar, fosse difícil pela sua mesma natureza, mas cujo singular valor se relacionava obscuramente com o crescimento de uma criança.
As mulheres eram secretamente impuras, inspiravam o terror.
Eis que ela grita, aquela que agora se inicia, mas que em si trazia os húmidos e soturnos germens do mal, todas as virtualidades demoníacas.
E se olhares para o alvoroço feminino, com o teu coração tão acessível ao patético, onde o gesto e o movimento curvo se gravam pela impressividade da graça e da inspirada reticência — se olhares assim, aprendiz, ficas a saber que as mulheres continuam o seu trabalho de surpreendentes tecedeiras do milagre.
Mas descobriste outra coisa: que há uma mentira.
Descobriste isto: as mulheres nem roçam por ti.
Nunca soubeste nada, não decifraste o menor sinal, elas sempre estiveram a uma inimaginável distância.
Se perguntasses: o que há em setembro?, apareceriam todas as mentiras.
Maria: a roupa seca mais depressa; Francisca: é o melhor tempo de praia; Filipa: a luz estonteia; Luísa: pode-se dormir ao ar livre; Merícia: custa a adormecer.
Mas em setembro aparece a menstruação.
E ele anda pela casa, em volta daquele círculo de treva ardente, rondando a sagrada vileza das mulheres.
Mas há nessa espécie de desavinda sede de conhecimento, ou nessa angustiosa fascinação, uma repugnância e um medo próximos do amor, um silêncio crispado e atento que quase se abre num louvor incoerente.
Todo aquele… todo aquele que tocar… ficará imundo…
Sim, arrebatam-na, e ela cresce, cresce.
Que é isso de pernas e braços que se põem ridiculamente a sair do seu tamanho, como tomados de um ímpeto próprio, comparado com aquilo que nem se nomeia, não se pode ver, e é sagrado e intocável pelo poder da sua própria maldição?
Uma irmã come ameixas, e isso é mentira.
Ele olhou-a, a ela, e olhou as outras raparigas, e a mãe, e a avó.
Aprendia, pensava ele, aprendia.
Tocava-lhes nos vestidos, via-as pentear-se, andar, falar, calarem-se.
O grito, sim, o grito era o limiar: a primeira e última verdade.
Depois, a treva.
E a irmã estava de repente no seu lugar — a ausência perfeita.
Em setembro, as crianças não dormem.
São rapazinhos de rosto atemorizado, o olhar aberto e imóvel, as mãos espalmadas sobre a colcha.
Talvez pudessem ficar assim, até serem homens, e o que cresceria então neles?
Quem sabe se apenas os cabelos e as unhas?
Mas ele levanta-se no meio da sua noite, um destes rapazinhos, porque afinal existe a força do amor.
Levanta-se para novos corredores e escadas — e anda como um sonâmbulo comido pela febre.
Que o crime é uma vocação — sim, diga-se dessa maneira; diga-se que o crime é uma vocação, do mesmo modo que o conhecimento.
Que são uma só coisa, isso; que o crime e o conhecimento são uma só coisa: uma vocação.
Ele levanta-se na sua noite, cheio de confuso amor, e precipita-se na sua silenciosa vocação: o crime do conhecimento.
E assim se aproxima, tacteando, com as mãos trementes de febre, dos lugares sagrados.
Bem pode ser que haja setembro, luz, coisas aparentemente fáceis, nenhuma dúvida.
Mas agora é sempre noite, sempre um fervor culpado, a descoberta da violação.
Pode-se falar de alegria?
Pode.
É disso mesmo, é de uma monstruosa alegria aquilo de que se fala.
Assim se caminha pelos corredores e quartos, pelo equívoco das velhas arquitecturas, e a inspiração é esta: uma alegria cujas dimensões são ainda imperscrutáveis.
Não se conte isto em tempo: foi muito tempo, ou foi muito pouco.
Não há tempo.
Porque esta alegria, este amor, este medo que anda, esta violação servida por minúcias mesquinhas, estão prontos para o muito ou o pouco tempo.
Exerce-se, e nisso se basta.
É uma aranha, tem as virtudes inteligentes, miúdas e tenazes da aranha.
Aquele rapazinho que fora apanhado pelo espanto e o terror, que se deitara de mãos abertas como fulminado, e estava pálido e já não sabia nada, esse, sim, esse.
É desse que se fala.
Pois levantou-se, e agora procura, cada vez mais perto, mais perto.
É ele.
E um dia então descobre um pano manchado de sangue menstrual e mete-o debaixo da camisa, contra a sua própria carne.
Parece que não chegou a deixar a cama, porque podemos encontrá-lo tal como estava: deitado de mãos estendidas, respirando com a boca entreaberta, e o olhar fixo no tecto.
Talvez um resto de sorriso fugindo dos lábios, ou o princípio de um sorriso.
Mas agora é ele que desaparece, cerra-se, corta todas as pontes que poderiam conduzir ao seu segredo.
Fica só.
Não atravessem corredores, nem subam ou desçam escadas.
Nunca o encontrarão.
Lentamente, a mão que talvez se julgasse adormecida sobe da colcha.
Nunca esteve tão acordada, nunca foi tão forte — aquela mão de rapazinho deitado.
Desabotoa a camisa — ela, a mão, a mão que sabe — e tira o pano para fora.
É sobre um rosto de olhos fechados que essa mão parece voar docemente, com o pano vermelho bem agarrado.
A mão desce sobre o rosto, e o que se poderia ver seria um fremir de narinas, e um tremer de lábios.
O odor tão vivo daquele sangue morto enche-o, passa pelo olfacto e enche-o turvamente.
Sim, sim, também isso, também isso é verdade: um beijo — o beijo do amor.
E, pelas pálpebras fechadas, lágrimas para que não há nome.
Quando ele abre os olhos, talvez ninguém saiba, mas abre-os para a alegria — a mais terrível das alegrias.
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