Bernardo Pinto de Almeida

Bernardo Pinto de Almeida

Bernardo [Alberto Frey] Pinto de Almeida é poeta e ensaísta com obra publicada em Portugal e no estrangeiro. Desde 1974 desenvolveu actividade poética, teórica, historiográfica e crítica. É investigador e professor catedrático de História e Teoria da Arte.

Porto
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Os mortos 1

Murmura-se pela casa
as crianças são afastadas para quartos
onde brincam e lhes pedem silêncio
graves criadas murmuram e restolham aventais
rangem as tábuas nos soalhos. Os mortos são assim
a tudo impõem sua regra de espanto
a morte é uma sucção de tudo à volta
como se a todos apontasse um dedo acusador.

Da sala para o quarto, do quarto para a cozinha
os passos avançam como se envergonhados. Morreu?
ainda está vivo? Ninguém sabe ao certo
quando as agulhas do relógio designam pontiagudas
horas que arrefecem nos cristais
sobre a toalha.

A mesa estava posta, os convidados próximos
vieram irmãos e familiares de longe
para saudar outra vez aquele que parte
não têm que dizer-se nesse encontro perplexo
que o tempo não ajustou senão por cerimónia
e olham-se uns aos outros numa vertigem cega
de se sentirem apoiados num qualquer sentimento,
um consentimento que os ligue a si, aos outros, ao seu tempo
porque aquele que morre os suga para dentro de outro tempo.

Assim a morte vai enchendo as nossas vidas
nem melhores nem piores, cada vez mais vazias,
vazias de si mesmas vazias de sentidos
que nos outros prolonguem o que já antes fomos:
numa fotografia entre laços, a infância,
nesta outra a correr e uma bola fugindo,
numa outra ainda um triciclo, depois no acampamento,
uma carta de curso, entre outros no quartel.

Mas inexorável o tempo nos apaga esses rostos
onde o espanto se fixava onde tudo era branco
nada se escrevia senão um gesto atento
uma delicadeza para com um outro olhar:
a mãe que se afastava, a namorada frágil
ou num grupo de amigos junto a um carro polido
um cigarro pendendo negligente dos lábios
um pull-over que ficou a preto e branco e
ela a sorrir ainda, a tia que se suicidou
antes do tempo.

Agora o morto está deitado sobre a cama
dir-se-ia que respira, dir-se-ia a sorrir,
mas no rictus imóvel ele já não está ali
partiu para qualquer lado deixa-nos de sobreaviso
vagos de nós mesmos como quartos devolutos
numa pensão de província que já ninguém frequenta.

Entre os vestidos pretos há um rosto que soluça
em que o silêncio faz de fogo cada lágrima
sob uma madeixa branca uma saudade traz
um qualquer suplemento a todo este vazio:
um filho que aproxima o corpo do pai ido
beijo que se troca de luto partilhado
abraço que ressoa do casaco apertado
da gravata com mofo no fundo de um armário.

A todos os convoca o morto neste dia
em que a todos dispensa silêncio por igual
pois todos se lhe tornam familiares na morte
mesmo o que passa ao acaso para entregar uma carta.

E uma porta se abre, uma janela que passa
deixa entrever um breve clarão de azul
um sol que cai a pique na hora do meio dia
faz destas horas graves um tempo quase esférico
de tão redondo, tão vazio,  
tão, para sempre, inapreensível.
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