Bernardo Pinto de Almeida
Bernardo [Alberto Frey] Pinto de Almeida é poeta e ensaísta com obra publicada em Portugal e no estrangeiro. Desde 1974 desenvolveu actividade poética, teórica, historiográfica e crítica. É investigador e professor catedrático de História e Teoria da Arte.
Porto
1787
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Os mortos 1
Murmura-se pela casa
as crianças são afastadas para quartos
onde brincam e lhes pedem silêncio
graves criadas murmuram e restolham aventais
rangem as tábuas nos soalhos. Os mortos são assim
a tudo impõem sua regra de espanto
a morte é uma sucção de tudo à volta
como se a todos apontasse um dedo acusador.
Da sala para o quarto, do quarto para a cozinha
os passos avançam como se envergonhados. Morreu?
ainda está vivo? Ninguém sabe ao certo
quando as agulhas do relógio designam pontiagudas
horas que arrefecem nos cristais
sobre a toalha.
A mesa estava posta, os convidados próximos
vieram irmãos e familiares de longe
para saudar outra vez aquele que parte
não têm que dizer-se nesse encontro perplexo
que o tempo não ajustou senão por cerimónia
e olham-se uns aos outros numa vertigem cega
de se sentirem apoiados num qualquer sentimento,
um consentimento que os ligue a si, aos outros, ao seu tempo
porque aquele que morre os suga para dentro de outro tempo.
Assim a morte vai enchendo as nossas vidas
nem melhores nem piores, cada vez mais vazias,
vazias de si mesmas vazias de sentidos
que nos outros prolonguem o que já antes fomos:
numa fotografia entre laços, a infância,
nesta outra a correr e uma bola fugindo,
numa outra ainda um triciclo, depois no acampamento,
uma carta de curso, entre outros no quartel.
Mas inexorável o tempo nos apaga esses rostos
onde o espanto se fixava onde tudo era branco
nada se escrevia senão um gesto atento
uma delicadeza para com um outro olhar:
a mãe que se afastava, a namorada frágil
ou num grupo de amigos junto a um carro polido
um cigarro pendendo negligente dos lábios
um pull-over que ficou a preto e branco e
ela a sorrir ainda, a tia que se suicidou
antes do tempo.
Agora o morto está deitado sobre a cama
dir-se-ia que respira, dir-se-ia a sorrir,
mas no rictus imóvel ele já não está ali
partiu para qualquer lado deixa-nos de sobreaviso
vagos de nós mesmos como quartos devolutos
numa pensão de província que já ninguém frequenta.
Entre os vestidos pretos há um rosto que soluça
em que o silêncio faz de fogo cada lágrima
sob uma madeixa branca uma saudade traz
um qualquer suplemento a todo este vazio:
um filho que aproxima o corpo do pai ido
beijo que se troca de luto partilhado
abraço que ressoa do casaco apertado
da gravata com mofo no fundo de um armário.
A todos os convoca o morto neste dia
em que a todos dispensa silêncio por igual
pois todos se lhe tornam familiares na morte
mesmo o que passa ao acaso para entregar uma carta.
E uma porta se abre, uma janela que passa
deixa entrever um breve clarão de azul
um sol que cai a pique na hora do meio dia
faz destas horas graves um tempo quase esférico
de tão redondo, tão vazio,
tão, para sempre, inapreensível.
as crianças são afastadas para quartos
onde brincam e lhes pedem silêncio
graves criadas murmuram e restolham aventais
rangem as tábuas nos soalhos. Os mortos são assim
a tudo impõem sua regra de espanto
a morte é uma sucção de tudo à volta
como se a todos apontasse um dedo acusador.
Da sala para o quarto, do quarto para a cozinha
os passos avançam como se envergonhados. Morreu?
ainda está vivo? Ninguém sabe ao certo
quando as agulhas do relógio designam pontiagudas
horas que arrefecem nos cristais
sobre a toalha.
A mesa estava posta, os convidados próximos
vieram irmãos e familiares de longe
para saudar outra vez aquele que parte
não têm que dizer-se nesse encontro perplexo
que o tempo não ajustou senão por cerimónia
e olham-se uns aos outros numa vertigem cega
de se sentirem apoiados num qualquer sentimento,
um consentimento que os ligue a si, aos outros, ao seu tempo
porque aquele que morre os suga para dentro de outro tempo.
Assim a morte vai enchendo as nossas vidas
nem melhores nem piores, cada vez mais vazias,
vazias de si mesmas vazias de sentidos
que nos outros prolonguem o que já antes fomos:
numa fotografia entre laços, a infância,
nesta outra a correr e uma bola fugindo,
numa outra ainda um triciclo, depois no acampamento,
uma carta de curso, entre outros no quartel.
Mas inexorável o tempo nos apaga esses rostos
onde o espanto se fixava onde tudo era branco
nada se escrevia senão um gesto atento
uma delicadeza para com um outro olhar:
a mãe que se afastava, a namorada frágil
ou num grupo de amigos junto a um carro polido
um cigarro pendendo negligente dos lábios
um pull-over que ficou a preto e branco e
ela a sorrir ainda, a tia que se suicidou
antes do tempo.
Agora o morto está deitado sobre a cama
dir-se-ia que respira, dir-se-ia a sorrir,
mas no rictus imóvel ele já não está ali
partiu para qualquer lado deixa-nos de sobreaviso
vagos de nós mesmos como quartos devolutos
numa pensão de província que já ninguém frequenta.
Entre os vestidos pretos há um rosto que soluça
em que o silêncio faz de fogo cada lágrima
sob uma madeixa branca uma saudade traz
um qualquer suplemento a todo este vazio:
um filho que aproxima o corpo do pai ido
beijo que se troca de luto partilhado
abraço que ressoa do casaco apertado
da gravata com mofo no fundo de um armário.
A todos os convoca o morto neste dia
em que a todos dispensa silêncio por igual
pois todos se lhe tornam familiares na morte
mesmo o que passa ao acaso para entregar uma carta.
E uma porta se abre, uma janela que passa
deixa entrever um breve clarão de azul
um sol que cai a pique na hora do meio dia
faz destas horas graves um tempo quase esférico
de tão redondo, tão vazio,
tão, para sempre, inapreensível.
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