Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho dos Tucuns
Apreciem, meus leitores,
Uma forte discussão,
Que tive com Zé Pretinho,
Um cantador do sertão,
O qual, no tanger do verso,
Vencia qualquer questão.
Um dia, determinei
A sair do Quixadá —
Uma das belas cidades
Do estado do Ceará.
Fui até o Piauí,
Ver os cantores de lá.
Me hospedei na Pimenteira
Depois em Alagoinha;
Cantei no Campo Maior,
No Angico e na Baixinha.
De lá eu tive um convite
Para cantar na Varzinha.
Quando cheguei na Varzinha,
Foi de manhã, bem cedinho;
Então, o dono da casa
Me perguntou sem carinho:
— Cego, você não tem medo
Da fama do Zé Pretinho?
Eu lhe disse: — Não, senhor,
Mas da verdade eu não zombo!
Mande chamar esse preto,
Que eu quero dar-lhe um tombo —
Ele chegando, um de nós
Hoje há de arder o lombo!
O dono da casa disse:
— Zé Preto, pelo comum,
Dá em dez ou vinte cegos —
Quanto mais sendo só um!
Mando já ao Tucumanzeiro
Chamar o Zé do Tucum.
Chamando um dos filhos, disse
Meu filho, você vá já
Dizer ao José Pretinho
Que desculpe eu não ir lá —
E que ele, como sem falta,
Hoje à noite venha cá.
Em casa do tal Pretinho,
Foi chegando o portador
E dizendo: — Lá em casa
Tem um cego cantador
E meu pai mandou dizer-lhe
Que vá tirar-lhe o calor!
Zé Pretinho respondeu:
— Bom amigo é quem avisa!
Menino, dizei ao cego
Que vá tirando a camisa,
Mande benzer logo o lombo,
Porque vou dar-lhe uma pisa!
Tudo zombava de mim
E eu ainda não sabia
Se o tal do Zé Pretinho
Vinha para a cantoria.
As cinco horas da tarde,
Chegou a cavalaria.
O preto vinha na frente,
Todo vestido de branco,
Seu cavalo encapotado,
Com o passo muito franco.
Riscaram duma só vez,
Todos no primeiro arranco
Saudaram o dono da casa
Todos com muita alegria,
E o velhote, satisfeito,
Folgava alegre e sorria.
Vou dar o nome do povo
Que veio pra cantoria:
Vieram o capitão Duda
Tonheiro, Pedro Galvão,
Augusto Antônio Feitosa
Francisco, Manoel Simão
Senhor José Campineiro
Tadeu e Pedro Aragão.
O José das Cabaceiras
E o senhor Manoel Casado,
Chico Lopes, Pedro Rosa
E o Manoel Bronzeado,
Antônio Lopes de Aquino
E um tal de Pé-Furado.
Amadeu, Fábio Fernandes,
Samuel e Jeremias,
O senhor Manoel Tomás,
Gonçalo, João Ananias
E veio o vigário velho,
Cura de Três Freguesias.
Foi dona Merandolina,
Do grêmio das professoras,
Levando suas duas filhas,
Bonitas, encantadoras —
Essas duas eram da igreja
As mais exímias cantoras.
Foi também Pedro Martins,
Alfredo e José Segundo,
Senhor Francisco Palmeira,
João Sampaio e Facundo
E um grupo de rapazes
Do batalhão vagabundo.
Levaram o negro pra sala
E depois para a cozinha;
Lhe ofereceram um jantar
De doce, queijo e galinha —
Para mim, veio um café
E uma magra bolachinha.
Depois, trouxeram o negro,
Colocaram no salão,
Assentado num sofá,
Com a viola na mão,
Junto duma escarradeira,
Para não cuspir no chão.
Ele tirou a viola
De um saco novo de chita,
E cuja viola estava
Toda enfeitada de fita.
Ouvi as moças dizendo:
— Oh, que viola bonita!
Então, para eu me sentar,
Botaram um pobre caixão,
Já velho, desmantelado,
Desses que vêm com sabão.
Eu sentei-me, ele vergou
E me deu um beliscão.
Eu tirei a rabequinha
De um pobre saco de meia,
Um pouco desconfiado
Por estar em terra alheia.
Aí umas moças disseram:
— Meu Deus, que rabeca feia!
Uma disse a Zé Pretinho:
— A roupa do cego é suja!
Botem três guardas na porta,
Para que ele não fuja
Cego feio, assim de óculos,
Só parece uma coruja!
E disse o capitão Duda,
Como homem muito sensato:
— Vamos fazer uma bolsa!
Botem dinheiro no prato —
Que é o mesmo que botar
Manteiga em venta de gato!
Disse mais: — Eu quero ver
Pretinho espalhar os pés!
E para os dois contendores
Tirei setenta mil réis,
Mas vou completar oitenta —
Da minha parte, dou dez!
Me disse o capitão Duda:
— Cego você não estranha!
Este dinheiro do prato,
Eu vou lhe dizer quem ganha:
Só pertence ao vencedor —
Nada leva quem apanha!
E nisto as moças disseram:
— Já tem oitenta mil réis,
Porque o bom capitão Duda,
Da Parte dele, deu dez. . .
Se acostaram a Zé Pretinho,
Botaram mais três anéis.
Então disse Zé Pretinho:
— De perder não tenho medo!
Esse cego apanha logo —
Falo sem pedir segredo!
Como tenho isto por certo,
Vou pondo os anéis no dedo ...
Afinemos o instrumento,
Entremos na discussão!
O meu guia disse pra mim:
— O negro parece o Cão!
Tenha cuidado com ele,
Quando entrarem na questão!
Então eu disse: — Seu Zé,
Sei que o senhor tem ciência —
Me parece que é dotado
Da Divina Providência!
Vamos saudar este povo,
Com sua justa excelência!
PRETINHO — Sai daí, cego amarelo,
Cor de couro de toucinho!
Um cego da tua forma
Chama-se abusa-vizinho —
Aonde eu botar os pés,
Cego não bota o focinho!
CEGO - Já vi que seu Zé Pretinho
É um homem sem ação —
Como se maltrata o outro
Sem haver alteração?!...
Eu pensava que o senhor
Tinha outra educação!
P. — Esse cego bruto, hoje,
Apanha, que fica roxo!
Cara de pão de cruzado,
Testa de carneiro mocho —
Cego, tu és o bichinho,
Que comendo vira o cocho!
C. — Seu José, o seu cantar
Merece ricos fulgores;
Merece ganhar na saia
Rosas e trovas de amores —
Mais tarde, as moças lhe dão
Bonitas palmas de flores!
P. — Cego, eu creio que tu és
Da raça do sapo sunga!
Cego não adora a Deus —
O deus do cego é calunga!
Aonde os homens conversam,
O cego chega e resmunga!
C. — Zé Preto, não me aborreço
Com teu cantar tão ruim!
Um homem que canta sério
Não trabalha verso assim —
Tirando as faltas que tem,
Botando em cima de mim!
P. — Cala-te, cego ruim!
Cego aqui não faz figura!
Cego, quando abre a boca,
É uma mentira,pura —
O cego, quanto mais mente,
Ainda mais sustenta e jura!
C. — Esse negro foi escravo,
Por isso é tão positivo!
Quer ser, na sala de branco,
Exagerado e altivo —
Negro da canela seca
Todo ele foi cativo!
P. — Eu te dou uma surra
De cipó de urtiga,
Te furo a barriga,
Mais tarde tu urra!
Hoje, o cego esturra,
Pedindo socorro —
Sai dizendo: — Eu morro!
Meu Deus, que fadiga!
Por uma intriga,
Eu de medo corro!
C. — Se eu der um tapa
No negro de fama,
Ele come lama,
Dizendo que é papa!
Eu rompo-lhe o mapa,
Lhe rompo de espora;
O negro hoje chora,
Com febre e com íngua —
Eu deixo-lhe a língua
Com um palmo de fora!
P. —No sertão, peguei
Cego malcriado —
Danei-lhe o machado,
Caiu, eu sangrei!
O couro eu tirei
Em regra de escala:
Espichei na sala,