Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis foi um escritor brasileiro, amplamente considerado como o maior nome da literatura nacional.
1839-06-21 Rio de Janeiro, Brasil
1908-09-29 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Duas Feiticeiras e Uma Cartomante
A AUTORIDADE recolheu esta semana à detenção duas feiticeiras e uma cartomante, levando as ferramentas de ambos os ofícios. Achando-se estes incluídos no código como delitos, não fez mais que a sua obrigação, ainda que incompletamente.
A minha questão é outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte reis, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feijão, arroz, farinha, sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de frangos. Uma delas, porém, chamada Umbelina, trazia no bolso não menos de quatrocentos e treze mil-réis. Eis o ponto. Peço a atenção das pessoas cultas.
Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o mais vá pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos não falam de feitiçaria, mas de furto. A feitiçaria, por isso mesmo que não está entre o homicídio e a impiedade, é delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam, é preciso examinar a sua afirmação, comparar o ato ao rendimento, e concluir.
Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou indigno de criticar um código, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: "O nariz do povo é a sua imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser". 0 que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que o fim do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns fizeram virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo de papel um palácio de mármore é o mesmo que dar um verdadeiro amor com dous pés de galinha. A feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas bugigangas, talvez a ceroula velha e há facultativo (não digo competente) que faz a mesma cousa, levando a ceroula nova. Que razão há para fazer de um ato malefício e benefício de outro?
O código, como Pão crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao código que a feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras verdades – como se a verdade fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e não falemos da cartomante, em quem se não achou dinheiro, provavelmente porque o tem na caixa econômica. Relativamente às cartomantes, confesso que não as considero como as feiticeiras. A cartomante nasceu com a civilização, isto é, com a corrupção, pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é natural do homem; vede as tribos primitivas. Que também o é da mulher, confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa extremamente grave, já há de ter chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na cadeia uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem mais ainda que cabeças de frangos ou pés de galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria necessário indagar o ponto de semelhança, e não estou de alma inclinada à demonstração. Nem à simples narração, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com grandes desejos de acudir à feitiçaria, é que me dói (sempre o interesse pessoal!) a prisão das duas mulheres. Talvez a moeda de dez réis me desse saúde, não digo uma só moeda, mas um milhão delas.
Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa é sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a viagem de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do que se perde, e tal é o segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já disse, não vou adiante. A pena cai-me. Não trato sequer da política, alias assunto que dá saúde. Há quem creia que ela é uma bela feitiçaria, e não falta quem acrescente que nesta, como na outra, o povo não Pode nem anda desnarigado; é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem muitos. Serme-ia preciso examinar este ponto longamente, profundamente, independentemente, e não há em mim agora profundeza, nem independência, nem me sobra tempo para tais estudos. Eu aprecio esta instituição que exprime a grande idéia do julgamento pelos pares; examina-se o fato sem prevenção de magistrados, nem câmara própria de ofício, sem nenhuma atenção à pena. O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis ainda mais. Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os pés, enquanto que um bom par de sapatos folgados é como os dos próprios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.
ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3 p. 646-648. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
NOTAS: Poe. Egdar Allan Poe (1809-1849), escritor norte-americano, que antecipa, sob muitos aspectos, o modernismo. Desentendeu-se com seu tutor, por seu utilitarismo e falsa severidade.
Rousseau. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e pensador francês. Um dos tópicos de seu pensamento é o que o homem é naturalmente bom e a sociedade o corrompe
A minha questão é outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte reis, uma perna de ceroula velha, saquinhos contendo feijão, arroz, farinha, sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de frangos. Uma delas, porém, chamada Umbelina, trazia no bolso não menos de quatrocentos e treze mil-réis. Eis o ponto. Peço a atenção das pessoas cultas.
Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o mais vá pelo mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus. Tais mandamentos não falam de feitiçaria, mas de furto. A feitiçaria, por isso mesmo que não está entre o homicídio e a impiedade, é delito inventado pelos homens, e os homens erram. Quando acertam, é preciso examinar a sua afirmação, comparar o ato ao rendimento, e concluir.
Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou indigno de criticar um código, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso? Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: "O nariz do povo é a sua imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser". 0 que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos puxá-lo até o fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que o fim do mundo, chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns fizeram virtude, e ainda os há virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo de papel um palácio de mármore é o mesmo que dar um verdadeiro amor com dous pés de galinha. A feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas bugigangas, talvez a ceroula velha e há facultativo (não digo competente) que faz a mesma cousa, levando a ceroula nova. Que razão há para fazer de um ato malefício e benefício de outro?
O código, como Pão crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao código que a feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos bens que espalha? A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não há quem creia outras verdades – como se a verdade fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e não falemos da cartomante, em quem se não achou dinheiro, provavelmente porque o tem na caixa econômica. Relativamente às cartomantes, confesso que não as considero como as feiticeiras. A cartomante nasceu com a civilização, isto é, com a corrupção, pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é natural do homem; vede as tribos primitivas. Que também o é da mulher, confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa extremamente grave, já há de ter chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na cadeia uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem mais ainda que cabeças de frangos ou pés de galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria necessário indagar o ponto de semelhança, e não estou de alma inclinada à demonstração. Nem à simples narração, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar doente, e com grandes desejos de acudir à feitiçaria, é que me dói (sempre o interesse pessoal!) a prisão das duas mulheres. Talvez a moeda de dez réis me desse saúde, não digo uma só moeda, mas um milhão delas.
Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema tem os seus meios curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou bravios, fazem ganhar dinheiro depressa e sem trabalho, tanto como fazem perdê-lo, igualmente depressa é sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a viagem de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do que se perde, e tal é o segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda a civilização antiga e moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já disse, não vou adiante. A pena cai-me. Não trato sequer da política, alias assunto que dá saúde. Há quem creia que ela é uma bela feitiçaria, e não falta quem acrescente que nesta, como na outra, o povo não Pode nem anda desnarigado; é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem muitos. Serme-ia preciso examinar este ponto longamente, profundamente, independentemente, e não há em mim agora profundeza, nem independência, nem me sobra tempo para tais estudos. Eu aprecio esta instituição que exprime a grande idéia do julgamento pelos pares; examina-se o fato sem prevenção de magistrados, nem câmara própria de ofício, sem nenhuma atenção à pena. O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis ainda mais. Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto particularmente dos meus velhos sapatos; os novos apertam os pés, enquanto que um bom par de sapatos folgados é como os dos próprios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.
ASSIS, Machado. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. 3 p. 646-648. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira)
NOTAS: Poe. Egdar Allan Poe (1809-1849), escritor norte-americano, que antecipa, sob muitos aspectos, o modernismo. Desentendeu-se com seu tutor, por seu utilitarismo e falsa severidade.
Rousseau. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e pensador francês. Um dos tópicos de seu pensamento é o que o homem é naturalmente bom e a sociedade o corrompe
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