Paulo Setúbal
Paulo de Oliveira Leite Setúbal foi um escritor brasileiro. Era casado com Francisca de Sousa Aranha, com quem teve três filhos: Maria Vicentina, Teresinha e Olavo Egídio Setúbal. Formou-se, em 1914, bacharel em direito, em São Paulo.
1893-01-01 Tatuí, São Paulo, Brasil
1937-05-04 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
20576
0
3
As Gentes das Lavras
Quantas lavras! As de "S. João", as de "Cocaes", as da "Chapada", as de "Jacey", as da "Conceição", as do "Sutil"... Tudo a jorrar ouro! Ouro, às arrobas, do melhor, mais puro, diziam, que o das Gerais. Esse ouro, como um clarim, conclamava sem cessar as gentes. Forasteiros e naturais, nortistas e sulistas, vinha tudo, por esses sertões afora — e sabe Deus como! — atrás do ouro de Cuiabá. Não havia barreiras que os fizessem estacar. Não havia perigos que os fizessem refletir. Nada! Nem os matos, nem os rios, nem as feras, nem a indiada, nem a fome, nem as misérias infinitas, horrorizantes da jornada.
Cuiabá tornou-se o açude onde se aglutinava a escumalha lodosa do Brasil. Era o desaguadouro de todos os aventureiros. E que aventureiros! Bandidos, fugidos às justiças, jogadores, matadores sanguinários, ladrões, salteadores. Ralé vil, ralé imunda, ralé repugnante.
E que vida, no Cuiabá, heterogênea e bruta! Nas tascas, onde havia sempre "mulheres bastardas e jogos de parar", desencadeavam-se tragédias selvagens, violentíssimas, em que fuzilavam facões e toledanas. Assassínio era coisa de todo o dia. Roubos também. Toda a gente roubava! Os negros, com perícias pasmosas, surripiavam ouro das bateias e iam, nos dias de folga, emborrachar-se com ele nas tavernas. Os índios, que sempre foram racialmente falsos, escondiam na boca os granetes que podiam e, à noite, muito às ocultas; entregavam-no aos ourives a troco de pedaços de fumo. Mulatas quitandeiras, com os tabuleiros à cabeça, viviam nas catas a vender broinhas aos escravos. Os escravos pagavam-nas com folhetas roubadas aos amos. Até os padres, contaminados pela fúria das riquezas, contrabandeavam. Rodrigo César, para cortar tudo aquilo, todas aquelas mortes, todos aqueles roubos, todo aquele contrabando, lançava, ininterruptamente, bandos sobre bandos. Ninguém mais, ordenava o Governador, "havendo de fazer jornada a Cuyabá, não a faça sem licença minha e sem tirar o paçaporte na secretaria do Governo". E mandava fechar as baiúcas de jogo. E proibia, sob penas carrancudas, que partissem forasteiros para as minas. E negros sem dono. E índios avulsos. E mulheres de vida fácil. E padres castelhanos. Estes, sob pretexto algum, mesmo sob pretexto de missão, não tinham sequer permissão de atravessar as minas. Mas os bandos, por mais rigorosos, eram vãos. O ouro de Cuiabá enlouquecia. Que importavam aquelas proibições? Toda a gente, para atingir o metal satânico, as fraudava. E não havia meio de impedir a fraude. Por isso, cada ano, as monções partiam repletas. E cada ano, nos povoados, contavam-se as misérias e os padecimentos dessas monções.
Publicada no livro O Ouro de Cuiabá (1933).
SETÚBAL, Paulo. O ouro de Cuiabá: crônicas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1956. p. 61-63. (Obras de Paulo Setúbal, 8)
Cuiabá tornou-se o açude onde se aglutinava a escumalha lodosa do Brasil. Era o desaguadouro de todos os aventureiros. E que aventureiros! Bandidos, fugidos às justiças, jogadores, matadores sanguinários, ladrões, salteadores. Ralé vil, ralé imunda, ralé repugnante.
E que vida, no Cuiabá, heterogênea e bruta! Nas tascas, onde havia sempre "mulheres bastardas e jogos de parar", desencadeavam-se tragédias selvagens, violentíssimas, em que fuzilavam facões e toledanas. Assassínio era coisa de todo o dia. Roubos também. Toda a gente roubava! Os negros, com perícias pasmosas, surripiavam ouro das bateias e iam, nos dias de folga, emborrachar-se com ele nas tavernas. Os índios, que sempre foram racialmente falsos, escondiam na boca os granetes que podiam e, à noite, muito às ocultas; entregavam-no aos ourives a troco de pedaços de fumo. Mulatas quitandeiras, com os tabuleiros à cabeça, viviam nas catas a vender broinhas aos escravos. Os escravos pagavam-nas com folhetas roubadas aos amos. Até os padres, contaminados pela fúria das riquezas, contrabandeavam. Rodrigo César, para cortar tudo aquilo, todas aquelas mortes, todos aqueles roubos, todo aquele contrabando, lançava, ininterruptamente, bandos sobre bandos. Ninguém mais, ordenava o Governador, "havendo de fazer jornada a Cuyabá, não a faça sem licença minha e sem tirar o paçaporte na secretaria do Governo". E mandava fechar as baiúcas de jogo. E proibia, sob penas carrancudas, que partissem forasteiros para as minas. E negros sem dono. E índios avulsos. E mulheres de vida fácil. E padres castelhanos. Estes, sob pretexto algum, mesmo sob pretexto de missão, não tinham sequer permissão de atravessar as minas. Mas os bandos, por mais rigorosos, eram vãos. O ouro de Cuiabá enlouquecia. Que importavam aquelas proibições? Toda a gente, para atingir o metal satânico, as fraudava. E não havia meio de impedir a fraude. Por isso, cada ano, as monções partiam repletas. E cada ano, nos povoados, contavam-se as misérias e os padecimentos dessas monções.
Publicada no livro O Ouro de Cuiabá (1933).
SETÚBAL, Paulo. O ouro de Cuiabá: crônicas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1956. p. 61-63. (Obras de Paulo Setúbal, 8)
810
0
Mais como isto
Ver também