LEMBRANÇAS
Empurrei a porta da biblioteca como jamais havia feito: lentamente.
Ouvi como nunca havia ouvido o ranger das dobradiças. Rangeu o metal como rangera por toda a vida a voz áspera de meu pai.
- Carlos, coloque óleo singer nesta coisa que ela para de cantar - dizia minha mãe sempre que abria o portão de entrada da casa.
Eu ia lá e resolvia a cantoria dos ferros do portão. E imaginava, na minha inocência de menino, a possiblidade de amaciar também a voz estridente e pesada de meu pai com óleo singer.
Dali mesmo, do limiar da porta, corri os olhos pela prateleira de livros. Todos impecavelmente dispostos por ordem alfabética. Alguns estavam ali há décadas, desde muito antes de eu nascer. Olhei para o Dom Quixote. Sempre tive curiosidade em saber quem era aquele personagem, mas principalmente quem era o seu criador.
Cervantes!
Aquela era uma obra em que a criatura superou em muito o criador.
Mas eternizaram-se os dois.
Escancarei a porta e entrei.
Por um momento escutei a voz inconfundível do meu pai.
- Preciso ir ao banheiro!
Aquela voz sem nenhuma maciez castigou meus ouvidos por longos e longos anos. Era uma voz que desejei, durante um bom tempo, que fosse calada.
- Preciso ir ao banheiro!!! - gritava meu pai sem saber ao certo se alguém o estava ouvindo.
Mas com frequência ele era ouvido. Principalmente por mim, que quase sempre estava no quarto ao lado, mergulhado nos livros, ou nas lições da escola.
Mesmo ouvindo-o, fingia que não. Esperava que minha mãe ou dona Lucinha fosse socorrê-lo.
Eram duas velhas cuidando de um velho que, sozinho, já não ia a lugar nenhum.
Dei alguns passos adiante e me detive mais uma vez: estava diante da poltrona na qual meu pai esteve sentado por longas hora diariamente nos últimos anos.
Institivamente toquei com meus dedos o couro escurecido pelo tempo.
Era a primeira vez em toda a minha vida que entrava naquele cômodo da casa, sem que ali estivesse o espectro de meu pai.
O seu fantasma havia partido, entretanto, aquele lugar estava carregado de sua presença.
Tomei a liberdade de me sentar. Confortável aquele banco. Nunca havia me sentado ali.
Voltei a olhar uma das prateleiras à minha frente. Ali estavam Machado, Jorge Amado, Graciliano, Thomas Mann, Steinbeck...
Livros, livros, livros...
Naquelas estantes, irretocavelmente organizadas, estava um mundo inteiro, sua história, suas pessoas, seus lugares mais distantes.
Meu pai havia, ao longo de toda uma vida, guardado tudo aquilo nas estantes e em sua cabeça.
Nunca havia parado para pensar naquilo, nem tampouco na grandiosidade daquele homem.
Imediatamente senti uma saudade indescritível dele.
Definitivamente sua ausência estava me machucando de uma forma avassaladora.
Pus-me de pé e virei-me para a porta de entrada da biblioteca. Diante de mim estava meu pai com os braços abertos para um aconchego que nunca havia existido.
Fechei os olhos e esperei pelo seu abraço.
Foi uma eternidade aquela espera.
Ao abrir os olhos, avistei pela abertura da porta dona Lucinha com um espanador na mão.
Vinha ela tirar o pó das estantes e varrer para longe as minhas lembranças.
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