Maurício de Oliveira
Maurício de Oliveira é um músico e escritor brasileiro.
A noite da consciência
Um cão selvagem corre por minhas veias
Não é daqui, mas de outros tempos
Vaga pelos milênios perdidos em meus sonhos
Salta tantas montanhas
E cruza tantos desertos
Quanto a lua pode ver de seu silêncio
Nos uivos desse cão não há história nenhuma
Há somente a vastidão, o espaço e o universo que se conhece por si mesmo
Mudo na noite intensa, sem que a consciência tenha explodido a admirá-lo
O cão selvagem nunca descansa,
E sente o suor frio em sua pele quente
E luta ferozmente pelo prazer de correr o mundo inteiro selvagem
Se é desafiado a sobreviver,
Se é ameaçado por outros ferozes animais
Não há sonho que ele já não tenha vivido
Não há um parto da natureza que se esconda dele
Não há luta que não tenha travado
Não há território inabitado que ele não conheça
Não há noite que se livre de seu ganido distante
Não há ar glacial ou equatorial que não tenha sido respirado por seuspulmões ofegantes
Um cão selvagem corre por minhas veias
Ele é de outros tempos
E não é violento nem maldoso
Porque em seu tempo não existe a maldade
Não é caridoso ou subserviente
Porque em seu tempo só há seres selvagens como ele
Ninguém sabe de onde ele veio
Ou se um dia irá de minha profundidade
Ele sempre existiu e nunca morrerá
Admirará a lua virgem de qualquer olhar humano, de cima de um montesagrado
Conhecerá os raios de sol que nunca tocaram um só pensamento
Uivará forte procurando sua companheira selvagem, porque é sua natureza
Não existem dúvidas nem certezas por seus caminhos
Só existe a terra virgem e aberta a seus passos
E a liberdade de não haver nenhum caminho
Certa vez ele viu uma fogueira em volta da qual homens das pedrascismavam
Despreocupados do ontem e do amanhã
Entreolhavam-se tão quietos quanto pode ser a pureza e a inocência danatureza
E o cão selvagem correu em direção a eles
E ao tocá-los, mergulhou na história humana,
E nada lhe foi olvidado
E quase cego pelo que viu
E ansioso, ofegante, extenuado
Encontrou outra fogueira e outros homens ao redor dela
Correu desesperadamente ao seu encontro
E pode retornar a seu tempo
Onde não há tempo nenhum
E salta de uma montanha a outra, forte
E cruza os desertos,
E é tão livre porque desconhece o que seja uma prisão
Numa feita experimentou o descanso
Dormindo num campo de mato orvalhado pela madrugada
Foi ai a única vez que eu quase o vi
Quando perdi a consciência de mim e de tudo ao redor
Mas me transformei nele e pude vagar pela noite desconhecida
E percorri as veias de um homem sem ser um homem
Vi explosões de pensamentos e memórias no horizonte
Sem saber o que significasse isso
E corri livremente sem nenhum cansaço.
Ás vezes quase o vejo