Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Desfile
Já fatigado de escrever em prosa,
este vago cronista pede ao verso
que de mansinho desabroche em rosa
e a Rachel de Queiroz hoje se oferte
pelo muito que amamos os seus livros
fraternos e pungentes, seres vivos.
Uma rosa a Rachel? Mas é tão pouco
uma flor por um mundo que começa
no Ceará e chega às Três Marias!
Falta evidentemente paridade,
como hoje se diz em cada esquina,
praia, bar, escritório da cidade.
— Falar nisso: qual é o seu salário,
meu doutor-marechal? quinhentos mil?
— Eu mesmo já nem sei, mas vou a jato
saber do último abono extraordinário
e daquele projeto que aposenta
o servidor com um dia de exercício
para ceder lugar a mais quarenta.
Ainda bem que, entre tudo que nos falta,
falta igualmente número ao Congresso…
Mas quem pode aguentar meia semana
em Brasília, onde a vida anda em recesso?
Se a Capital não volta para o Rio,
pois nem o Rio a quer (Inês é morta),
e na praça tristonha os Três Poderes
semelham um deserto fundo de horta,
o jeito, Juscelino, é por decreto
extinguir-se o governo da República,
o que não faz lá muita diferença
e formalmente fica mais correto.
Difícil é extinguir essa doença
chamada camarite vereadora,
ou, dizendo melhor, devoradora,
que já no corpo em flor da Guanabara,
perfumado a lavanda de esperanças,
coloca a nódoa espúria de uma tara.
Aproveitando a rima: e as duas Franças?
Uma, livre, querendo livre a Argélia,
outra, buscando em ferros conservá-la.
Ai, ganância cruel que assim repele a
voz da razão e o senso de justiça!
O que vibra na gente de sensível,
de reto e inconformado, neste mundo
indeciso entre trágicos destinos,
o que há de mais leal e mais profundo,
pulsa convosco, amigos argelinos.
E nessa americana poranduba,
um verso irmão lá vai, direto a Cuba,
onde o sonho dos homens se elabora,
confuso, dolorido… até que um dia
a vida, se não doce como cana,
pelo menos se torne mais humana.
03/12/1960
este vago cronista pede ao verso
que de mansinho desabroche em rosa
e a Rachel de Queiroz hoje se oferte
pelo muito que amamos os seus livros
fraternos e pungentes, seres vivos.
Uma rosa a Rachel? Mas é tão pouco
uma flor por um mundo que começa
no Ceará e chega às Três Marias!
Falta evidentemente paridade,
como hoje se diz em cada esquina,
praia, bar, escritório da cidade.
— Falar nisso: qual é o seu salário,
meu doutor-marechal? quinhentos mil?
— Eu mesmo já nem sei, mas vou a jato
saber do último abono extraordinário
e daquele projeto que aposenta
o servidor com um dia de exercício
para ceder lugar a mais quarenta.
Ainda bem que, entre tudo que nos falta,
falta igualmente número ao Congresso…
Mas quem pode aguentar meia semana
em Brasília, onde a vida anda em recesso?
Se a Capital não volta para o Rio,
pois nem o Rio a quer (Inês é morta),
e na praça tristonha os Três Poderes
semelham um deserto fundo de horta,
o jeito, Juscelino, é por decreto
extinguir-se o governo da República,
o que não faz lá muita diferença
e formalmente fica mais correto.
Difícil é extinguir essa doença
chamada camarite vereadora,
ou, dizendo melhor, devoradora,
que já no corpo em flor da Guanabara,
perfumado a lavanda de esperanças,
coloca a nódoa espúria de uma tara.
Aproveitando a rima: e as duas Franças?
Uma, livre, querendo livre a Argélia,
outra, buscando em ferros conservá-la.
Ai, ganância cruel que assim repele a
voz da razão e o senso de justiça!
O que vibra na gente de sensível,
de reto e inconformado, neste mundo
indeciso entre trágicos destinos,
o que há de mais leal e mais profundo,
pulsa convosco, amigos argelinos.
E nessa americana poranduba,
um verso irmão lá vai, direto a Cuba,
onde o sonho dos homens se elabora,
confuso, dolorido… até que um dia
a vida, se não doce como cana,
pelo menos se torne mais humana.
03/12/1960
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