Fernando Pessoa
Fernando António Nogueira Pessoa, mais conhecido como Fernando Pessoa, foi um poeta, filósofo e escritor português. Fernando Pessoa é o mais universal poeta português.
1888-06-13 Lisboa, Portugal
1935-11-30 Lisboa
3801341
158
2902
O véu das lágrimas não cega.
O véu das lágrimas não cega.
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo e adormeço,
Num torpor em que me esqueço
Que existo inda neste mundo que há...
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará –,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
(Meu Deus!)
Un soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar exterior e raro
Os olhos com que o vi.
Mas quê? Divago e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha contra o muro.
Mas, mãe não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima
Quebra-te, coração...
17/09/1935
Vejo, a chorar,
O que essa música me entrega –
A mãe que eu tinha, o antigo lar,
A criança que fui,
O horror do tempo, porque flui,
O horror da vida, porque é só matar!
Vejo e adormeço,
Num torpor em que me esqueço
Que existo inda neste mundo que há...
Estou vendo minha mãe tocar.
E essas mãos brancas e pequenas,
Cuja carícia nunca mais me afagará –,
Tocam ao piano, cuidadosas e serenas,
(Meu Deus!)
Un soir à Lima.
Ah, vejo tudo claro!
Estou outra vez ali.
Afasto do luar exterior e raro
Os olhos com que o vi.
Mas quê? Divago e a música acabou...
Divago como sempre divaguei
Sem ter na alma certeza de quem sou,
Nem verdadeira fé ou firme lei
Divago, crio eternidades minhas
Num ópio de memória e de abandono.
Entronizo fantásticas rainhas
Sem para elas ter o trono.
Sonho porque me banho
No rio irreal da música evocada.
Minha alma é uma criança esfarrapada
Que dorme num recanto obscuro.
De meu só tenho,
Na realidade certa e acordada,
Os trapos da minha alma abandonada,
E a cabeça que sonha contra o muro.
Mas, mãe não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Um outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ilusão.
Un soir à Lima
Quebra-te, coração...
17/09/1935
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