Em Certas Estações Obsessivas
Em certas estações obsessivas
insondáveis
pela doçura e a desordem, eu vi
sobre
o barulho dos buracos terrestres
as caras
engolfadas fulgurando até ao sangue, sua teia
de ossos fechada
por membranas que respiram com luz
própria.
O luxo do espaço é um talento da árvore,
a arte do mundo húmido.
Por dentro da terra
o ouro cresce
em cadeia. Vi
a massa arterial das casas
contorcendo-se
no fundo
da luz,
onde o dia faz uma ressaca onde
gira a noite com seu tronco de planetas.
Eram
rápidas,
fortes,
espaçosas
as noites do poder. O alimento vinha
com o apuro do mel. O dom
desenvolvia em mim esses mesmos rostos
abertos a meio, com a lua
e o sol dentro e fora.
Lanho a lanho
cerrara-se a carne em seu tecido
redondo.
Vêem-se as raízes animais dos cancros, mas
no coração estrangulado, assim
estrangulada a água por circuitos
cegos,
quem vê a queimadura
do ouro
inteiro?
As caras irrompem
dos nós de sangue, dos rins, de uma
coluna
enraizada, uma
constelação calcária.
Às vezes
o mármore reflui numa onda muscular,
e sobre a torsão
interna
as mãos cruas ardem.
E o golpe que me abre desde a uretra
à garganta
brilha
como o abismo venoso da terra.
A pupila deste animal grande como uma pálpebra
ao espelho, nua, a dormir,
sob as radiações
brancas.
Longas estrelas rodam entre os pólos
das salas, voltam-se
as camisas
na translação dos dias ópticos, todo o ar se enche
de noites
largas.
O braço enxuto plantado.
Na límpida teia das mãos,
a colher que se arqueia
desde
a traça alimentar à costura cirúrgica
da garganta
onde a voz rebenta
num buraco de sangue. Mas as cabeças, que olham
pelos lados
novos
de gárgulas jorrando toda a força
da luz interna,
vivem da energia
da nossa graça, da ferida
da elegância. A violência envenena-me.
As aberturas
que os braços fazem na água, aquilo
que eu fecho quando
o sono me corrompe ou quando
incito ou afugento as paisagens,
o que alimenta
as musas
abismadas
é tudo quanto me cega.
Também as mulheres se alumiam
pela abundância, pela
boca até ao fundo, o pêlo que salta,
omoplatas,
mãos redondas, os borbotões
da seda
escoada.
Têm
caras ascensionais, magnéticas. Inspira-as
o movimento dos quartos, a matriz
secreta
do ouro afundada entre
a vulva e o coração,
a órbita
das laranjas à volta
estuante
da estaca.
A estrela voltaica queimando
a minha obra
morosa afina sombriamente cada cara
soldada
ponto a ponto,
sobre as válvulas, sobre
a luz que se abre e se fecha
na carne
lunar, implacável.
Tudo faísca: a fruta
que se apanha, o feixe
vertebral, os orifícios de sangue
entre os poros
da madeira.
Respira,
dói.
Como uma artéria radial,
a atenção
que dói de baixo para o alto, as meninges
abertas
por fendas luminosas.
Alimentava-me
dos rostos minados pela rede dos nervos
negros e das veias
até à raiz cravada
da voz
— o terrífico
aparelho da fome. Toda a obra.
Dói.
A memória maneja a sua luz, os dedos,
a matéria.
É mais forte assim
queimada no écran onde brilha
o buraco da carne,
os espelhos
fechados
de repente vivos como oceanos sob
os antebraços, as mãos.
Desta cadeira vejo
a marcenaria da árvore.
Os fulcros do ouro, o hausto
do meio da terra.
O som espacial da pedra cai
no fundo do dia,
pulsa
a noite vascular, estendida
como uma toalha.
E dentro dessa noite cheia de ar negro,
os planetas
luzem
como rostos que se aproximam com as fendas
de sangue.
Às vezes
meu sangue enreda-se no fundo dos mortos.
O ar,
abraçam-no as grandes constelações
tácteis.
A noite
é uma árvore crua,
voraz,
entranhada.
Se a estrela transborda da boca,
a água
vivente
torce-se entre os braços ferozes. E das crateras
arranca-se
o rosto com os poros brancos
a toda a volta.
Quando
as veias dos mortos fazem um nó furioso
com as minhas veias,
a voz
costura-se com as linhas de sangue
da sua fala. E os dedos gravitacionais
sobre a queimadura
manobram os pequenos sóis
enxameados e baixos.
Com a fundura cristalográfica das caras
enervadas
na claridade, a estrela oficinal
crepitando
sobre
a ressaca redonda da carne.
O ouro fundido nos pulmões, cortado
na boca. Respira
o buraco onde o ar se incendeia.
E o equilíbrio
lunar
do sono, do poder.
Eu movo-me no mundo
como púrpura, a vara
das maçãs fechadas.
E escoa-se em mim o caudal
nuclear dos astros. Remoinhos de mel
obscuro. Os filões do álcool.
Esta golfada de luz pela ferida de um espelho.
E o rosto fendido e a claridade
arrancada
ao interior mais forte
da imagem.
Constelação de sangue,
o halo
de um orifício nocturno.
Os sóis turbilhonam entre
as espáduas.
Este é o dia rítmico e abundante.
Olho a brancura espasmódica,
a queimadura central
dessa imagem.
Meu sangue envolve os mortos
como um braço profundo.
Solda-os.
E toda a fruta está soldada à potência
da sua árvore.
Engolfo-me no espelho como a água
que pulsa num rosto, nessa abertura
salgada. Recebo a cara nos feixes
da minha cara, entre
constelações vertebrais, o fundo
das artérias.
Vi
dorsos torcerem-se à volta da sua dor.
No meio
o sorvedouro fazia um laço
de carne. Rodava em torno das válvulas negras
a estrela atómica.
Afronte
ao alto da beleza áspera,
labaredas
vazadas de lado a lado do corpo
como uma corola cesariana.
E nessa
carne focal
curva,
o toque de um ferro vivo, um dedo, um osso
fechado,
no centro das aberturas onde a energia
se desencadeia.
E é cruel surpreender
a inocência
frenética, a taciturna doçura
com que devora:
às vezes
a força dos rostos que tem contra Deus.
Assim:
o nervo que entrelaça a carne toda,
de estrela a estrela da obra.
22-23.XI.77.