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Forma e Exegese

1935

Vinicius de Moraes

Vinicius de Moraes

Vinícius de Moraes, nascido Marcus Vinicius de Moraes foi um diplomata, dramaturgo, jornalista, poeta e compositor brasileiro.

1913-10-19 Gávea, Rio de Janeiro, Brasil
1980-07-09 Rio de Janeiro, Brasil
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O Nascimento do Homem

I

E uma vez, quando ajoelhados assistíamos à dança nua das auroras
Surgiu do céu parado como uma visão de alta serenidade
Uma branca mulher de cujo sexo a luz jorrava em ondas
E de cujos seios corria um doce leite ignorado.

Oh, como ela era bela! era impura — mas como ela era bela!
Era como um canto ou como uma flor brotando ou como um cisne
Tinha um sorriso de praia em madrugada e um olhar evanescente
E uma cabeleira de luz como uma cachoeira em plenilúnio.

Vinha dela uma fala de amor irresistível
Um chamado como uma canção noturna na distância
Um calor de corpo dormindo e um abandono de onda descendo
Uma sedução de vela fugindo ou de garça voando.

E a ela fomos e a ela nos misturamos e a tivemos...
Em véus de neblina fugiam as auroras nos braços do vento
Mas que nos importava se também ela nos carregava nos seus braços
E se o seu leite sobre nós escorria e pelo céu?

Ela nos acolheu, estranhos parasitas, pelo seu corpo desnudado
E nós a amamos e defendemos e nós no ventre a fecundamos
Dormíamos sobre os seus seios apojados ao clarão das tormentas
E desejávamos ser astros para inda melhor compreendê-la.

Uma noite o horrível sonho desceu sobre as nossas almas sossegadas
A amada ia ficando gelada e silenciosa — luzes morriam nos seus olhos...
Do seu peito corria o leite frio e ao nosso amor desacordada

Subiu mais alto e mais além, morta dentro do espaço.

Muito tempo choramos e as nossas lágrimas inundaram a terra
Mas morre toda a dor ante a visão dolorosa da beleza
Ao vulto da manhã sonhamos a paz e a desejamos
Sonhamos a grande viagem através da serenidade das crateras.

Mas quando as nossas asas vibraram no ar dormente
Sentimos a prisão nebulosa de leite envolvendo as nossas espécies
A Via Láctea — o rio da paixão correndo sobre a pureza das estrelas
A linfa dos peitos da amada que um dia morreu.

Maldito o que bebeu o leite dos seios da virgem que não era mãe mas era
amante
Maldito o que se banhou na luz que não era pura mas ardente
Maldito o que se demorou na contemplação do sexo que não era calmo mas
amargo
O que beijou os lábios que eram como a ferida dando sangue!

E nós ali ficamos, batendo as asas libertas, escravos do misterioso plasma
Metade anjo, metade demônio, cheios da euforia do vento e da doçura do
cárcere remoto
Debruçados sobre a terra, mostrando a maravilhosa essência da nossa vida
Lírios, já agora turvos lírios das campas, nascidos da face lívida da morte.

II

Mas vai que havia por esse tempo nas tribos da terra
Estranhas mulheres de olhos parados e longas vestes nazarenas
Que tinham o plácido amor nos gestos tristes e serenos
E o divino desejo nos frios lábios anelantes.

E quando as noites estelares fremiam nos campos sem lua
E a Via Láctea como uma visão de lágrimas surgia
Elas beijavam de leve a face do homem dormindo no feno
E saíam dos casebres ocultos, pelas estradas murmurantes.

E no momento em que a planície escura beijava os dois longínquos
horizontes
E o céu se derramava iluminadamente sobre a várzea
Iam as mulheres e se deitavam no chão paralisadas
As brancas túnicas abertas e o branco ventre desnudado.

E pela noite adentro elas ficavam, descobertas
O amante olhar boiando sobre a grande plantação de estrelas
No desejo sem fim dos pequenos seres de luz alcandorados
Que palpitavam na distância numa promessa de beleza.

E tão maternalmente os desejavam e tão na alma os possuíam
Que às vezes desgravitados uns despenhavam-se no espaço
E vertiginosamente caíam numa chuva de fogo e de fulgores
Pelo misterioso tropismo subitamente carregados.

Nesse instante, ao delíquio de amor das destinadas
Num milagre de unção, delas se projetava à altura
Como um cogumelo gigantesco um grande útero fremente
Que ao céu colhia a estrela e ao ventre retornava.

E assim pelo ciclo negro da pálida esfera através do tempo
Ao clarão imortal dos pássaros de fogo cruzando o céu noturno
As mulheres, aos gritos agudos da carne rompida de dentro
Iam se fecundando ao amor puríssimo do espaço.

E às cores da manhã elas voltavam vagarosas
Pelas estradas frescas, através dos vastos bosques de pinheiros
E ao chegar, no feno onde o homem sereno inda dormia
Em preces rituais e cantos místicos velavam.

Um dia mordiam-lhes o ventre, nas entranhas — entre raios de sol vinha a
tormenta...
Sofriam... e ao estridor dos elementos confundidos
Deitavam à terra o fruto maldito de cuja face transtornada
As primeiras e mais tristes lágrimas desciam.

Tinha nascido o poeta. Sua face é bela, seu coração é trágico
Seu destino é atroz; ao triste materno beijo mudo e ausente
Ele parte! Busca ainda as viagens eternas da origem
Sonha ainda a música um dia ouvida em sua essência.
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O Bergantim da Aurora

Velho, conheces por acaso o bergantim da aurora
Nunca o viste passar quando a saudade noturna te leva para o convés
imóvel dos rochedos?
Há muito tempo ele me lançou sobre uma praia deserta, velho lobo
E todas as albas têm visto meus olhos nos altos promontórios, esperando.

Sem ele, que poderei fazer, pobre velho? ele existe porque há homens que
fogem
Um dia, porque pensasse em Deus eu me vi limpo de todas as feridas
E eu dormi — ai de mim! — não dormia há tantas noites! — dormi e eles
me viram calmo
E me deram às ondas que tiveram pena da minha triste mocidade.

Mas que me vale, santo velho, ver o meu corpo são e a minha alma doente
Que me vale ver minha pele unida e meu peito alto para o carinho?
Se eu voltar os olhos, tua filha talvez os ame, que eles são belos, velho lobo
Antes o bergantim fantasma onde as cordoalhas apodrecem no sangue das
mãos...

Nunca o conhecerás, ó alma de apóstolo, o grande bergantim da madrugada
Ele não corre os mesmos mares que o teu valente brigue outrora viu
O mar que perdeste matava a fome de tua mulher e de teus filhos
O mar que eu perdi era a fome mesma, velho, a eterna fome...

Nunca o conhecerás. Há em tuas grandes rugas a vaga doçura dos caminhos
pobres
Teus sofrimentos foram a curta ausência, a lágrima dos adeuses
Quando a distância apagava a visão de duas mulheres paradas sobre a
última rocha
Já a visão espantosa dos gelos brilhava nos teus olhos — oh, as baleias brancas!...

Mas eu, velho, sofri a grande ausência, o deserto de Deus, o meu deserto
Como esquecimento tive o gelo desagregado dos seios nus e dos ventres
boiando
Eu, velho lobo, sofri o abandono do amor, tive o exaspero
Ó solidão, deusa dos vencidos, minha deusa...

Nunca o compreenderás. Nunca sentirás porque um dia eu corri para o
vento
E desci pela areia e entrei pelo mar e nadei e nadei.
Sonhara...: “Vai. O bergantim é a morte longínqua, é o eterno passeio do
pensamento silencioso
É o judeu dos mares cuja alma avara de dor castiga o corpo errante...”

E fui. Se tu soubesses que a ânsia de chegar é a maior ânsia
Teus olhos, ó alma de crente, se fechariam como as nuvens
Porque eu era a folha morta diante dos elementos loucos
Porque eu era o grão de pó na réstia infinita.

Mas sofrera demais para não ter chegado
E um dia ele surgiu como um pássaro atroz
Vi-lhe a negra carcaça à flor das ondas mansas
E o branco velame inchado de cujos mastaréus pendiam corpos nus.

Mas o homem que chega é o homem que mais sofre
A memória é a mão de Deus que nos toca de leve e nos faz sondar o
caminho atrás
Ai! sofri por deixar tudo o que tinha tido
O lar, a mulher e a esperança de atingir Damasco na minha fuga...

Cheguei. Era afinal o vazio da perpétua prisão longe do sofrimento
Era o trabalho forçado que esquece, era o corpo doendo nas chagas abertas
Era a suprema magreza da pele contendo o esqueleto fantástico
Era a suprema magreza do ser contendo o espírito fantástico.

Fui. Por toda a parte homens como eu, sombras vazias
Homens arrastando vigas, outros velhos, velhos faquires insensíveis
As fundas órbitas negras, a ossada encolhida, encorujada
Corpos secos, carne sem dor, morta de há muito.

Por toda a parte homens como eu, homens passando
Homens nus, murchos, esmagando o sexo ao peso das âncoras enormes
Bocas rígidas, sem água e sem rum, túmulos da língua árida e estéril.
Mãos sangrando como facas cravadas na carne das cordas.

Nunca poderás imaginar, ó coração de pai, o bergantim da aurora
Que caminha errante ao ritmo fúnebre dos passos se arrastando
Nele vivi o grande esquecimento das galeras de escravos
Mas brilhavam demais as estrelas no céu.

E um dia — era o sangue no meu peito — eu vi a grande estrela
A grande estrela da alba cuja cabeleira aflora às águas
Ela pousou no meu sangue como a tarde nos montes apaziguados
E eu pensei que a estrela é o amor de Deus na imensa altura.

E meus olhos dormiram no beijo da estrela fugitiva
Ai de mim! não dormia há tantas noites! — dormi e eles me viram calmo
E a serpente que eu nunca supus viver no seio da miséria
Deu-me às ondas que tiveram pena da minha triste mocidade.

Eis por que estou aqui, velho lobo, esperando
O grande bergantim que eu sei não voltará
Mas tornar, pobre velho, é perder tua filha, é verter outro sangue
Antes o bergantim fantasma, onde o espaço é pobre e a caminhada eterna.

Eis por que, velho lobo, aqui estou esperando
À luz da mesma estrela, nos altos promontórios
Aqui a morte me acolherá docemente, esperando
O grande bergantim que eu sei não voltará.
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A Impossível Partida

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes
da cidade
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne
indesejada?...
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas
colhidas
E se a minha inquietação iria temer a tua eloquência silenciosa?...
Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável
Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...
...o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na
face...
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos
calmos
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua
visão?...
Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros
Luzes voando ao vento como folhas
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...
Sons... o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...
Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das
coisas...
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma
Soprando de manso na boca vermelha dos astros...

Como poder abrir no teu seio, ó noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo

Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos
desconhecidas me arrebatem?...
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Três Respostas Em Face de Deus

Familles, je vous hais! foyers clos; portes refermées; possessions jalouses
du bonheur.
A. Gide

C'est l'ami ni ardent ni faible. L'ami.
Rimbaud

…ô Femme, monceau d'entrailles, pitié douce Tu n'est jamais la soeur de
charité, jamais
Rimbaud

Sim, vós sois... (eu deveria ajoelhar dizendo os vossos nomes!)
E sem vós quem se mataria no presságio de alguma madrugada?
À vossa mesa irei murchando para que o vosso vinho vá bebendo
De minha poesia farei música para que não mais vos firam os seus acentos
dolorosos
Livres as mãos e serei Tântalo — mas o suplício da sede vós o vereis
apenas nos meus olhos
Que adormeceram nas visões das auroras geladas onde o sol de sangue não
caminha...

E vós!... (Oh, o fervor de dizer os vossos nomes angustiados!)
Deixai correr o vosso sangue eterno sobre as minhas lágrimas de ouro!
Vós sois o espírito, a alma, a inteligência das coisas criadas
E a vós eu não rirei — rir é atormentar a tragédia interior que ama o
silêncio
Convosco e contra vós eu vagarei em todos os desertos
E a mesma águia se alimentará das nossas entranhas tormentosas.

E vós, serenos anjos... (eu deveria morrer dizendo os vossos nomes!)

Vós cujos pequenos seios se iluminavam misteriosamente à minha presença
silenciosa!
V ossa lembrança é como a vida que não abandona o espírito no sono
Vós fostes para mim o grande encontro...
E vós também, ó árvores de desejo! Vós, a jetatura de Deus enlouquecido
Vós sereis o demônio em todas as idades.
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Variações Sobre o Tema da Essência

(Três movimentos em busca da música)

C'est aussi simple qu'une phrase musicale.
Rimbaud

I
Foi no instante em que o luar desceu da face do Cristo como um velário
E na madrugada atenta ouviu-se um choro convulso de criança despertando
Sem que nada se movesse na treva entrou violentamente pela janela um
grande seio branco
Um grande seio apunhalado de onde escorria um sangue roxo e que pulsava
como se possuísse um coração.
Eu estava estendido, insone, como quem vai morrer — o ar pesava sobre
mim como um sudário
E as ideias tinham misteriosamente retornado às coisas e boiavam como
pássaros fora da minha compreensão.
O grande seio veio do espaço, veio do espaço e ficou batendo no ar como
um corpo de pombo
Veio com o terror que me apertou a garganta para que o
[mundo não pudesse ouvir meu grito (o mundo! o mundo! o mundo!...)
Tudo era o instante original, mas eu de nada sabia senão do
[meu horror e da volúpia que vinha crescendo em minhas pernas
E que brotava como um lírio impuro e ficava palpitando dentro do ar.
Era o caos da poesia — eu vivia ali como a pedra despenhada no espaço
perfeito
Mas no olhar que eu lançava dentro de mim, oh, eu sei que
[havia um grande seio de alabastro pingando sangue e leite
E que um lírio vermelho hauria desesperadamente como uma boca infantil
longe da dor.
V oavam sobre mim asas cansadas e crepes de luto flutuavam — eu tinha
embebido a noite de cansaço
Eu sentia o branco seio murchar, murchar sem vida e o rubro lírio crescer
cheio de seiva
E o horror sair brandamente pelas janelas e a aragem balançar a imagem do
Cristo pra lá e pra cá
Eu sentia a volúpia dormir ao canto dos galos e o luar pousar agora sobre o
papel branco como o seio
E a aurora vir nascendo sob o meu corpo e ir me levando para as
[ideias negras, azuis, verdes, rubras, mas também misteriosas.
Eu me levantei — nos meus dedos os sentidos vivendo, na minha mão um
objeto como uma lâmina
E às cegas eu feri o papel como o seio, enquanto o meu olhar hauria o seio
como o lírio.

O poema desencantado nascia das sombras de Deus...

II

Provei as fontes de mel nas cavernas tropicais... (— minha imaginação,
enlouquece!)
Fui perseguido pelas floras carnívoras dos vales torturados e penetrei os rios
e cheguei aos bordos do mar fantástico
Nada me impediu de sonhar a poesia — oh, eu me converti à necessidade
do amor primeiro
E nas correspondências do finito em mim cheguei aos grandes sistemas
poéticos do renovamento.
Só desejei a essência — vi campos de lírios se levantarem da terra e cujas
raízes eram ratos brancos em fuga
Vi-os que corriam para as montanhas e os persegui com a minha ira — subi
as
[escarpas ardentes como se foram virgens
E quando do mais alto olhei o céu recebi em pleno rosto o vômito das
estrelas menstruadas — eternidade!

O poeta é como a criança que viu a estrela. — Ah, balbucios, palavras
entrecortadas e ritmos de berço. De súbito a dor.

Ai de mim! É como o jovem que sonhando nas janelas azuis, eis que a
[incompreensão vem e ele entra e atravessa à toa um grande corredor
sombrio
E vai se debruçar na janela do fim que se abre para a nova paisagem e ali
estende o seu sofrimento (ele retornará...)
Movimentos de areia no meu espírito como se fossem nascer cidades
esplêndidas — paz! paz!

Música longínqua penetrando a terra e devolvendo misteriosamente a
doçura ao espelho das lâminas e ao brilho dos diamantes. Homens correndo
na minha imaginação — por que correm os homens?

O terrível é pensar que há loucos como eu em todas as estradas
Os faces-de-lua, seres tristes e vãos, legionários do deserto
(Não seria ridículo vê-los carregando o sexo enorme às costas como
trágicas mochilas — ai! Deixem-me rir...
Deixem-me rir — por Deus! — que eu me perco em visões que nem sei
mais...)

É Jesus passando pelas ruas de Jerusalém ao peso da cruz. Nos campos e
nos montes a poesia das parábolas. V ociferações, ódios, punhos cerrados
contra o mistério. Destino.

Oh, não! Não é a ilusão enganadora nem a palavra vã dos oráculos e dos
sonhos
O poeta mentirá para que o sofrimento dos homens se perpetue.

E eu diria... “Sonhei as fontes de mel...”

III

Do amor como do fruto. (Sonhos dolorosos das ermas madrugadas
acordando...)
Nas savanas a visão dos cactos parados à sombra dos escravos — as negras
mãos no ventre luminoso das jazidas

Do amor como do fruto. (A alma dos sons nos algodoais das velhas
lendas...)
Êxtases da terra às manadas de búfalos passando — ecos vertiginosos das quebradas azuis

Ô Mighty Lord!

Os rios, os pinheiros e a luz no olhar dos cães — as raposas brancas no olhar dos caçadores
Lobos uivando, Yukon! Yukon! Yukon! (Casebres nascendo das montanhas paralisadas...)
Do amor como da serenidade. Saudade dos vulcões nas lavas de neve descendo os abismos
Cantos frios de pássaros desconhecidos. (Arco-íris como pórticos de eternidade...)
Do amor como da serenidade nas planícies infinitas o espírito das asas no vento

Ô Lord of Peace!

Do amor como da morte. (Ilhas de gelo ao sabor das correntes...)
Ursas surgindo da aurora boreal como almas gigantescas do grandesilêncio-branco
Do amor como da morte. (Gotas de sangue sobre a neve...)
A vida das focas continuamente se arrastando para o não-sei-onde — cadáveres eternos de heróis longínquos

Ô Lord of Death!
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Os Malditos

(A aparição do poeta)

Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro; cinco,
talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze
terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos — o desespero da dízima
infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.

Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido como
espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da órbita cega dos lagos desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do solo cauterizado das
batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?

Viemos de longe — trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado
Do que criou e fez nascer o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro no corpo efêmero de Faraó.

Nascemos da fonte e viemos puros porque herdeiros do sangue
E também disformes porque — ai dos escravos! — não há beleza nas
origens
V oávamos — Deus dera a asa do bem e a asa do mal às nossas formas
impalpáveis
Recolhendo a alma das coisas para o castigo e para a perfeição na vida
eterna.

Nascemos da fonte e dentro das eras vagamos como sementes invisíveis o
coração dos mundos e dos homens
Deixando atrás de nós o espaço como a memória latente da nossa vida
anterior
Porque o espaço é o tempo morto — e o espaço é a memória do poeta
Como o tempo vivo é a memória do homem sobre a terra.

Foi muito antes dos pássaros — apenas rolavam na esfera os cantos de Deus
E apenas a sua sombra imensa cruzava o ar como um farol alucinado...
Existíamos já... No caos de Deus girávamos como o pó prisioneiro da
vertigem
Mas de onde viéramos nós e por que privilégio recebido?

E enquanto o eterno tirava da música vazia a harmonia criadora
E da harmonia criadora a ordem dos seres e da ordem dos seres o amor
E do amor a morte e da morte o tempo e do tempo o sofrimento
E do sofrimento a contemplação e da contemplação a serenidade
imperecível.

Nós percorríamos como estranhas larvas a forma patética dos astros
A tudo assistindo e tudo ouvindo e tudo guardando eternamente
Como, não sei... Éramos a primeira manifestação da divindade
Éramos o primeiro ovo se fecundando à cálida centelha.

Vivemos o inconsciente das idades nos braços palpitantes dos ciclones
E as germinações da carne no dorso descarnado dos luares
Assistimos ao mistério da revelação dos Trópicos e dos Signos
E a espantosa encantação dos eclipses e das esfinges.

Descemos longamente o espelho contemplativo das águas dos rios do Éden
E vimos, entre os animais, o homem possuir doidamente a fêmea sobre a
relva
Seguimos... E quando o decurião feriu o peito de Deus crucificado
Como borboletas de sangue brotamos da carne aberta e para o amor
celestial voamos.

Quantos somos, não sei... somos um, talvez dois, três, talvez quatro; cinco,
talvez, nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam doze
terras
Quantos, não sei... Somos a constelação perdida que caminha largando
estrelas
Somos a estrela perdida que caminha desfeita em luz.
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Olhar Para Trás

Nem surgisse um olhar de piedade ou de amor
Nem houvesse uma branca mão que apaziguasse minha fronte palpitante...
Eu estaria sempre como um círio queimando para o céu a minha fatalidade
Sobre o cadáver ainda morno desse passado adolescente.

Talvez no espaço perfeito aparecesse a visão nua
Ou talvez a porta do oratório se fosse abrindo misteriosamente...
Eu estaria esquecido, tateando suavemente a face do filho morto
Partido de dor, chorando sobre o seu corpo insepultável.

Talvez da carne do homem prostrado se visse sair uma sombra igual à
minha
Que amasse as andorinhas, os seios virgens, os perfumes e os lírios da terra
Talvez... mas todas as visões estariam também em minhas lágrimas boiando
E elas seriam como óleo santo e como pétalas se derramando sobre o nada.

Alguém gritaria longe: — “Quantas rosas nos deu a primavera!...”
Eu olharia vagamente o jardim cheio de sol e de cores noivas se enlaçando
Talvez mesmo meu olhar seguisse da flor o voo rápido de um pássaro
Mas sob meus dedos vivos estaria a sua boca fria e os seus cabelos
luminosos.

Rumores chegariam a mim, distintos como passos na madrugada
Uma voz cantou, foi a irmã, foi a irmã vestida de branco! — a sua voz é
fresca como o orvalho...
Beijam-me a face — irmã vestida de azul, por que estás triste?
Deu-te a vida a velar um passado também?

V oltaria o silêncio — seria uma quietude de nave em Senhor Morto
Numa onda de dor eu tomaria a pobre face em minhas mãos angustiadas

Auscultaria o sopro, diria à toa — Escuta, acorda
Por que me deixaste assim sem me dizeres quem eu sou?

E o olhar estaria ansioso esperando
E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando...

No entanto, dentro do sol a minha sombra se projeta
Sobre as casas avança o seu vago perfil tristonho
Anda, dilui-se, dobra-se nos degraus das altas escadas silenciosas
E morre quando o prazer pede a treva para a consumação da sua miséria.

É que ela vai sofrer o instante que me falta
Esse instante de amor, de sonho, de esquecimento
E quando chega, a horas mortas, deixa em meu ser uma braçada de
lembranças
Que eu desfolho saudoso sobre o corpo embalsamado do eterno ausente.

Nem surgisse em minhas mãos a rósea ferida
Nem porejasse em minha pele o sangue da agonia...
Eu diria — Senhor, por que me escolheste a mim que sou escravo
Por que me chagaste a mim cheio de chagas?

Nem do meu vazio te criasses, anjo que eu sonhei de brancos seios
De branco ventre e de brancas pernas acordadas
Nem vibrasses no espaço em que te moldei perfeita...
Eu te diria — Por que vieste te dar ao já vendido?

Oh, estranho húmus deste ser inerme e que eu sinto latente
Escorre sobre mim como o luar nas fontes pobres
Embriaga o meu peito do teu bafo que é como o sândalo
Enche o meu espírito do teu sangue que é a própria vida!

Fora, um riso de criança — longínqua infância da hóstia consagrada
Aqui estou ardendo a minha eternidade junto ao teu corpo frágil!

Eu sei que a morte abrirá no meu deserto fontes maravilhosas
E vozes que eu não sabia em mim lutarão contra a Voz.

Agora porém estou vivendo da tua chama como a cera
O infinito nada poderá contra mim porque de mim quer tudo
Ele ama no teu sereno cadáver o terrível cadáver que eu seria
O belo cadáver nu cheio de cicatriz e de úlceras.

Quem chamou por mim, tu, mãe? Teu filho sonha...
Lembras-te, mãe, a juventude, a grande praia enluarada...
Pensaste em mim, mãe? Oh, tudo é tão triste
A casa, o jardim, o teu olhar, o meu olhar, o olhar de Deus...

E sob a minha mão tenho a impressão da boca fria murmurando
Sinto-me cego e olho o céu e leio nos dedos a mágica lembrança
Passastes, estrelas... Voltais de novo arrastando brancos véus
Passastes, luas... Voltais de novo arrastando negros véus...
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Sursum

Eu avanço no espaço as mãos crispadas, essas mãos juntas — lembras-te?
— que o destino das coisas separou
E sinto vir se desenrolando no ar o grande manto luminoso onde os anjos
entoam madrugadas...
A névoa é como o incenso que desce e se desmancha em brancas visões que
vão subindo...
— Vão subindo as colunas do céu... (cisnes em multidão!) como os olhares
serenos estão longe!...
Oh, vitrais iluminados que vindes crescendo nas brumas da aurora, o sangue
escorre do coração dos vossos santos
Oh, Mãe das Sete Espadas... Os anjos passeiam com pés de lã sobre as
teclas dos velhos harmônios...
Oh, extensão escura de fiéis! Cabeças que vos curvais ao peso tão leve da
gaze eucarística
Ouvis? Há sobre nós um brando tatalar de asas enormes
O sopro de uma presença invade a grande floresta de mármore em ascensão.
Sentis? Há um olhar de luz passando em meus cabelos, agnus dei...
Oh, repousar a face, dormir a carne misteriosa dentro do perfume do
incenso em ondas!
No branco lajedo os passos caminham, os anjos farfalham as vestes de seda
Homens, derramai-vos como a semente pelo chão! O triste é o que não pode
ter amor...
Do órgão como uma colmeia os sons são abelhas eternas fugindo,
zumbindo, parando no ar
Homens, crescei da terra como as sementes e cantai velhas canções
lembradas...
Vejo chegar a procissão de arcanjos — seus olhos fixam a cruz da
consagração que se iluminou no espaço
Cantam seus olhos azuis, tantum ergo! — de suas cabeleiras louras brota o
incêndio impalpável da destinação

Queimam... alongam em êxtase os corpos de cera, e crepitando serenamente
a cabeça em chamas
V oam — sobre o mistério voam os círios alados cruzando o ar um frêmito
de fogo!...
Oh, foi outrora, quando nascia o sol — Tudo volta, eu dizia — e olhava o
[céu onde eu não via Deus suspenso sobre o caos como o impossível
equilíbrio
Balançando o imenso turíbulo do tempo sobre a inexistência da humana
serenidade.
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Ilha do Governador

Esse ruído dentro do mar invisível são barcos passando
Esse ei-ou que ficou nos meus ouvidos são os pescadores esquecidos
Eles vêm remando sob o peso de grandes mágoas
Vêm de longe e murmurando desaparecem no escuro quieto.
De onde chega essa voz que canta a juventude calma?
De onde sai esse som de piano antigo sonhando a Berceuse?
Por que vieram as grandes carroças entornando cal no barro molhado?

Os olhos de Susana eram doces mas Eli tinha seios bonitos
Eu sofria junto de Susana — ela era a contemplação das tardes longas
Eli era o beijo ardente sobre a areia úmida.
Eu me admirava horas e horas no espelho.

Um dia mandei: “Susana, esquece-me, não sou digno de ti — sempre teu...”
Depois, eu e Eli fomos andando... — ela tremia no meu braço
Eu tremia no braço dela, os seios dela tremiam
A noite tremia nos ei-ou dos pescadores...

Meus amigos se chamavam Mário e Quincas, eram humildes, não sabiam
Com eles aprendi a rachar lenha e ir buscar conchas sonoras no mar fundo
Comigo eles aprenderam a conquistar as jovens praianas tímidas e risonhas.
Eu mostrava meus sonetos aos meus amigos — eles mostravam os grandes
olhos abertos
E gratos me traziam mangas maduras roubadas nos caminhos.

Um dia eu li Alexandre Dumas e esqueci os meus amigos.
Depois recebi um saco de mangas
Toda a afeição da ausência...

Como não lembrar essas noites cheias de mar batendo?

Como não lembrar Susana e Eli?
Como esquecer os amigos pobres?
Eles são essa memória que é sempre sofrimento
Vêm da noite inquieta que agora me cobre
São o olhar de Clara e o beijo de Carmem
São os novos amigos, os que roubaram luz e me trouxeram.
Como esquecer isso que foi a primeira angústia
Se o murmúrio do mar está sempre nos meus ouvidos
Se o barco que eu não via é a vida passando
Se o ei-ou dos pescadores é o gemido de angústia de todas as noites?
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O Bom Ladrão

São horas, inclina o teu doloroso rosto sobre a visão da velha paisagem
quieta
Passeia o teu mais fundo olhar sobre os brancos horizontes onde há imagens
perdidas
Afaga num derradeiro gesto os cabelos de tuas irmãs chorando
Beija uma vez mais a fronte materna.
São horas! Grava na última lágrima toda a desolação vivida
Liberta das cavas escuras, ó grande bandido, a tua alma, trágica esposa
E vai — é longe, é muito longe! — talvez toda uma vida, talvez nunca...
Foi outrora... Dizem que primeiro ele andou de mão em mão e muito
poucos o quiseram
E que por ele foi transformada a face da vida e que de medo o enterraram
E que desde então ninguém se atreve a penetrar a terra bendita.
É a suprema aventura — vai! ele está lá... — é tão maior que Monte-Cristo!
Está lá voltado paradamente para as estrelas claras
Aberto para a pouca fé dos teus olhos
Palpável para a insaciedade dos teus dedos.
Está lá, o grande tesouro, num campo silencioso como os teus passos
Sob uma laje bruta como a tua inteligência
Numa cova negra como o teu destino humano.
No entanto ele é luz e beleza e glória
E se tu o tocares, a manhã se fará em todos os abismos
Rompe a terra com as mesmas mãos com que rompeste a carne
Penetra a profundidade da morte, ó tu que jogas a cada instante com a tua
vida
E se ainda assim te cegar a dúvida, toca-o, mergulha nele o rosto sangrento
Porque ele é teu nesse momento, tu poderás levá-lo para sempre
Poderás viver dele e só dele porque tu és dele na eternidade.
Porém será muito ouro para as tuas arcas...
Será, deixa que eu te diga, muito ouro para as tuas arcas...

Olha! a teus pés Jerusalém se estende e dorme o sono dos pecadores
Além as terras se misturam como lésbicas esquecidas
Mais longe ainda, no teu país, as tuas desoladas te pranteiam
V olta. Traze o bastante para a consolação dos teus aflitos
Tua alegria será maior porque há ulcerados nos caminhos
Há mulheres perdidas chorando nas portas
Há judeus a espoliar pelas tavernas
V olta... Há tanto ouro no campo-santo
Que tua avareza seria vã para contê-lo
V olta... Ensina à humanidade a roubar o arrependimento
Porque todo o arrependimento será pouco para a culpa de ter roubado...

Porém tu serás o bom ladrão, tu estarás nas chagas do peito...
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O Incriado

Distantes estão os caminhos que vão para o Tempo — outro luar eu vi
passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna
espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se
amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como as vozes dos campos
moribundos.

Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Nada há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.

Nem plácidas visões restam aos olhos — só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só em busca de Deus.

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar
batendo
No entanto como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema fraqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a
primavera é eterna.

Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem
humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra

E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.

Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas
as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar eu repousei, quando minha boca ficou
sedenta eu bebi
Quando meu ser pediu a carne eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.

Longe está o espaço onde existem os grandes voos e onde a música vibra
solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes voos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à
madrugada.

Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companheira errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.

Onde os cantos longínquos do oceano?... Sobre a espessura verde eu me
debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores — são jovens que o
eterno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o
perfume da flor morta.

Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada
valho.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança

Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode
sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.

De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos
sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...

Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... Sobre o meu corpo as árvores passando...
Quem morreu se estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu sei que estou vivo
porque sofro.

Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a bênção, mas sofro como um desesperado e nada
posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos e das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.

Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o
meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!

Às vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro de suspensão a beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa,
Que palpita no ar fremente e e envolve todos os gritos num só grito.

Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.

Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memória
Eu sou como velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam — nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passando, passando, passando...
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O Cadafalso

Eu caí de joelhos diante do amor transtornado do teu rosto
Estavas alta e imóvel — mas teus seios vieram sobre mim e me feriram os
olhos
E trouxeram sangue ao ar onde a tempestade agonizava.
Subitamente cresci e me multipliquei ao peso de tanta carne
Cresci sentindo que a pureza escorria de mim como a chuva dos galhos
E me deixava parado, vazio para a contemplação da tua face.
Longe do mistério do teu amor, curvado, eu fiquei ante tuas partes intocadas
Cheio de desejo e inquietação, com uma enorme vontade de chorar no teu
vestido.
Para desvendar as tuas formas nas minhas lágrimas
Agoniado abracei-te e ocultei o meu sopro quente no teu ventre
E logo te senti como um cepo e em torno a mim eram monges brancos em
ofício de mortos
E também — quem chorou? — vozes como lamentações se repetindo.
No horror da treva cravou-se em meus olhos uma estranha máscara de dois
gumes
E sobre o meu peito e sobre os meus braços, tenazes de fogo, e sob os meus
pés piras ardendo.
Oh, tudo era martírio dentro daquelas vozes soluçando
Tudo era dor e escura angústia dentro da noite despertada!
“Me salvem — gritei — me salvem que não sou eu!” — e as ladainhas
repetiam — me salvem que não sou eu!
E veio então uma mulher como uma visão sangrenta de revolta
Que com mão de gigante colheu o que de sexo havia em mim e o espremeu
amargamente
E que separou a minha cabeça violentamente do meu corpo.

Nesse momento eu tive de partir e todos fugiam aterrados

Porque misteriosamente meu corpo transportava minha cabeça para o
inferno...
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A Legião Dos Úrias

Quando a meia-noite surge nas estradas vertiginosas das montanhas
Uns após outros, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Passam olhos brilhantes de rostos invisíveis na noite
Que fixam o vento gelado sem estremecimento.

São os prisioneiros da Lua. Às vezes, se a tempestade
Apaga no céu a languidez imóvel da grande princesa
Dizem os camponeses ouvir os uivos tétricos e distantes
Dos Cavaleiros Úrias que pingam sangue das partes amaldiçoadas.

São os escravos da Lua. Vieram também de ventres brancos e puros
Tiveram também olhos azuis e cachos louros sobre a fronte...
Mas um dia a grande princesa os fez enlouquecidos, e eles foram
escurecendo
Em muitos ventres que eram também brancos mas que eram impuros.

E desde então nas noites claras eles aparecem
Sobre cavalos lívidos que conhecem todos os caminhos
E vão pelas fazendas arrancando o sexo das meninas e das mães sozinhas
E das éguas e das vacas que dormem afastadas dos machos fortes.

Aos olhos das velhas paralíticas murchadas que esperam a morte noturna
Eles descobrem solenemente as netas e as filhas deliquescentes
E com garras fortes arrancam do último pano os nervos flácidos e abertos
Que em suas unhas agudas vivem ainda longas palpitações de sangue.

Depois amontoam a presa sangrenta sob a luz pálida da deusa
E acendem fogueiras brancas de onde se erguem chamas desconhecidas e
fumos
Que vão ferir as narinas trêmulas dos adolescentes adormecidos

Que acordam inquietos nas cidades sentindo náuseas e convulsões mornas.

E então, após colherem as vibrações de leitos fremindo distantes
E os rinchos de animais seminando no solo endurecido
Eles erguem cantos à grande princesa crispada no alto
E voltam silenciosos para as regiões selvagens onde vagam.

V olta a Legião dos Úrias pelos caminhos enluarados
Uns após outros, somente os olhos, negros sobre cavalos lívidos
Deles foge o abutre que conhece todas as carniças
E a hiena que já provou de todos os cadáveres.

São eles que deixam dentro do espaço emocionado
O estranho fluido todo feito de plácidas lembranças
Que traz às donzelas imagens suaves de outras donzelas
E traz aos meninos figuras formosas de outros meninos.

São eles que fazem penetrar nos lares adormecidos
Onde o novilúnio tomba como um olhar desatinado
O incenso perturbador das rubras vísceras queimadas
Que traz à irmã o corpo mais forte da outra irmã.

São eles que abrem os olhos inexperientes e inquietos
Das crianças apenas lançadas no regaço do mundo
Para o sangue misterioso esquecido em panos amontoados
Onde ainda brilha o rubro olhar implacável da grande princesa.

Não há anátema para a Legião dos Cavaleiros Úrias
Passa o inevitável onde passam os Cavaleiros Úrias
Por que a fatalidade dos Cavaleiros Úrias?
Por que, por que os Cavaleiros Úrias?

Oh, se a tempestade boiasse eternamente no céu trágico
Oh, se fossem apagados os raios da louca estéril
Oh, se o sangue pingado do desespero dos Cavaleiros Úrias
Afogasse toda a região amaldiçoada!

Seria talvez belo — seria apenas o sofrimento do amor puro
Seria o pranto correndo dos olhos de todos os jovens
Mas a Legião dos Úrias está espiando a altura imóvel
Fechai as portas, fechai as janelas, fechai-vos, meninas!

Eles virão, uns após outros, os olhos brilhando no escuro
Fixando a lua gelada sem estremecimento
Chegarão os Úrias, beirando os grotões enluarados sobre cavalos lívidos
Quando a meia-noite surgir nas estradas vertiginosas das montanhas.
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A Última Parábola

No céu um dia eu vi — quando? — era na tarde roxa
As nuvens brancas e ligeiras do levante contarem a história estranha e
desconhecida
De um cordeiro de luz que pastava no poente distante num grande espaço
aberto.
A visão clara e imóvel fascinava os meus olhos...
Mas eis que um lobo feroz sobe de trás de uma montanha longínqua
E avança sobre o animal sagrado que apavorado se adelgaça em mulher nua
E escraviza o lobo que já agora é um enforcado que balança lentamente ao
vento.
A mulher nua baila para um chefe árabe mas este corta-lhe a cabeça com
uma espada
E atira-a sobre o colo de Jesus entre os pequeninos.
Eu vejo o olhar de piedade sobre a triste oferenda mas
[nesse momento saem da cabeça chifres que lhe ferem o rosto
E eis que é a cabeça de Satã cujo corpo são os pequeninos
E que ergue um braço apontando a Jesus uma luta de cavalos enfurecidos
Eu sigo o drama e vejo saírem de todos os lados mulheres e homens
Que eram como faunos e sereias e outros que eram como centauros
Se misturarem numa impossível confusão de braços e de pernas
E se unirem depois num grande gigante descomposto e ébrio de garras
abertas.
O outro braço de Satã se ergue e sustém a queda de uma criança
Que se despenhou do seio da mãe e que se fragmenta na sua mão alçada
Eu olho apavorado a luxúria de todo o céu cheio de corpos enlaçados
E que vai desaparecer na noite mais próxima
Mas eis que Jesus abre os braços e se agiganta numa cruz que se abaixa
lentamente
E que absorve todos os seres imobilizados no frio da noite.
Eu chorei e caminhei para a grande cruz pousada no céu

Mas a escuridão veio e — ai de mim! — a primeira estrela fecundou os
meus olhos de poesia terrena!...
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O Escravo

J'ai plus de souvenirs que si j'avais mille ans.
Baudelaire

A grande Morte que cada um traz em si.
Rilke

Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha
E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos de
batalha
Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.
Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava
Em torno de mim tudo era desespero de espadas estorcidas se
desvencilhando
Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava
impedindo meus passos
E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.
Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta
Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido
Fui ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me
fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão, vendo o
céu, vendo o chão
Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se movendo...

Aqui é o misterioso reino dos ciprestes...

Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu
Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.
É este o misterioso reino dos ciprestes
Que aprisionam os cravos lívidos e os lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas.
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos gestos lentos dos gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...
Aqui estou eu pequenino como um musgo mas meu pavor é grande e não
conhece luz
É um pavor que atravessa a distância de toda a minha vida.

É este o feudo da morte implacável...
Vede — reis, príncipes, duques, cortesãos, carrascos do grande país sem
mulheres
São seus míseros servos a terra que me aprisionou nas suas entranhas
O vento que a seu mando entorna da boca dos lírios o orvalho que rega o
seu solo
A noite que os aproxima no baile macabro das reverências fantásticas
E os mochos que entoam lúgubres cantochões ao tempo inacabado...
É aí que estou prisioneiro entre milhões de prisioneiros
Pequeno arbusto esgalhado que não dorme e que não vive
À espera da minha vez que virá sem objeto e sem distância.
É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo
Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero
Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio
Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca
dos lírios
Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra
que o vento espalha
Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o
meu destino
Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre
escravo dos príncipes loucos.
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O Outro

Às vezes, na hora trêmula em que os espaços desmancham-se em neblina
E a gaze da noite se esgarça suspensa na bruma dormente
Eu sinto sobre o meu ser uma presença estranha que me faz despertar
angustiado
E me faz debruçar à janela sondando os véus que se emaranham dentre as
folhas...
Fico... e muita vez os meus olhos se desprendem misteriosamente das
minhas órbitas
E presos a mim vão penetrando a noite e eu vou me sentindo encher da
visão que os leva.
V ozes e imagens chegam a mim, mas eu inda sou e por isso não vejo
V ozes enfermas chegam a mim — são como vozes de mães e de irmãs
chorando
Corpos nus de crianças, seios estrangulados, bocas opressas na última
angústia
Mulheres passando atônitas, espectros confusos, diluídos como as visões
lacrimosas.
E de repente eu sou arrancado como um grito e parto e penetro em meus
olhos
E estou sobre o ponto mais alto, sobre o abismo que desce para a aurora que
sobe
Onde na hora extrema o rio humano se despeja vertiginosamente e de onde
surgirá
Lívido e descarnado, quando o pálido sangue do Sol morrendo escorrer da
face verde das montanhas.

Mas por que estranho desígnio foi diferente a angústia daquela manhã
tristíssima
Por que não vieram até mim as lamentações de todas as madrugadas
Por que quando eu caminhei para o sofrimento, foi o meu sofrimento que
[eu vi estendido sobre as coisas como a morte?
Ai de mim! a piedade ferira o meu coração e eu era o mais desamparado
O consolo estava nas minhas palavras e eu era o único inconsolável
A riqueza estivera nas minhas mãos e eu era pobre como os olhos dos
cegos...
Na solidão absoluta de mil léguas foi o meu corpo que eu vi acorrentado ao
pântano infinito
Foi a minha boca que eu vi se abrindo ao beijo da água ulcerada de flores
leprosas.
Dormiam sapos sobre a podridão das vitórias moribundas
E vapores úmidos subiam fétidos como as exalações dos campos de guerra.
Eu estava só como o homem sem Deus no meio do tempo e sobre minha
cabeça pairavam as aves da maldição
E a vastidão desolada era grande demais para os meus pobres gritos de
agonia.
De fora eu vi e senti medo — como que um ávido polvo me prendia os pés
ao fundo da lama
Eu gritei para o miserável que erguesse os braços e buscasse a
[música que estava no pântano e na pele desfeita das flores intumescidas
Mas ele já nada parecia ouvir — era como o mau ladrão crucificado.

Oh, não estivesse ele tão longe de meus pés e eu o calcaria como um verme
Não fosse minha náusea e eu o iria matar no seu martírio
Não existisse a minha incompreensão e eu lhe desfaria a carne entre meus
dedos.
Porque a sua vida está presa à minha e é preciso que eu me liberte
Porque ele é o desespero vão que mata a serenidade que quer brotar em
mim
Porque as suas úlceras doem numa carne que não é a dele.
Mas algum dia quando ele estiver dormindo eu esquecerei tudo e afrontarei
o pântano.
Mesmo que pereça eu o esmagarei como uma víbora e o afogarei na lama
podre
E se eu voltar eu sei que as visões passadas não mais povoarão os meus
olhos distantes
Eu sei que terei forças para comer a terra e ficar escorrendo em sangue

como as árvores
Parado diante da beleza, agasalhando os príncipes e os monges, na
contemplação da poesia eterna.
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