O Vôo Sobre As Igrejas
Vamos até à Matriz de Antônio Dias
onde repousa, pó sem esperança, pó sem lembrança, o Aleijadinho.
Vamos subindo em procissão a lenta ladeira.
Padres e anjos, santos e bispos nos acompanham
e tornam mais rica, tornam mais grave a romaria de assombração.
Mas já não há fantasmas no dia claro,
tudo é tão simples,
tudo tão nu,
as cores e cheiros do presente são tão fortes e tão urgentes
que nem se percebem catingas e rouges, boduns e ouros do século 18.
Vamos subindo, vamos deixando a terra lá em baixo.
Nesta subida só serafins, só querubins fogem conosco,
de róseas faces, de nádegas róseas e rechonchudas,
empunham coroas, entoam cantos, riscam ornatos no azul autêntico.
Este mulato de gênio
lavou na pedra-sabão
todos os nossos pecados,
as nossas luxúrias todas,
e esse tropel de desejos,
essa ânsia de ir para o céu
e de pecar mais na terra;
esse mulato de gênio
subiu nas asas da fama,
teve dinheiro, mulher,
escravo, comida farta,
teve também escorbuto
e morreu sem consolação.
Vamos subindo nessa viagem, vamos deixando
na torre mais alta o sino que tange, o som que se perde,
devotas de luto que batem joelhos, o sacristão que limpa os altares,
os mortos que pensam, sós, em silêncio, nas catacumbas e sacristias,
São Jorge com seu ginete,
o deus coberto de chagas, a virgem cortada de espadas,
e os passos da paixão, que jazem inertes na solidão.
Era uma vez um Aleijadinho,
não tinha dedo, não tinha mão,
raiva e cinzel, lá isso tinha,
era uma vez um Aleijadinho,
era uma vez muitas igrejas
com muitos paraísos e muitos infernos,
era uma vez São João, Ouro Preto,
Mariana, Sabará, Congonhas,
era uma vez muitas cidades
e o Aleijadinho era uma vez.