João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, vai de uma tendência surrealista até a poesia popular, porém caracterizada pelo rigor estético.

1920-01-09 Recife, Pernambuco, Brasil
1999-10-09 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Alguns Poemas

Escritos com o Corpo

I

Ela tem tal composição
e bem entramada sintaxe
que só se pode apreendê-la
em conjunto, nunca em detalhe.

Não se vê nenhum termo, nela,
em que a atenção mais se retarde,
e que, por mais significante,
possua, exclusivo, sua chave.

Nem é possível dividi-la,
como a uma sentença, em partes;
menos, do que nela é sentido,
se conseguir uma paráfrase.

E assim como, apenas completa,
ela é capaz de revelar-se,
apenas um corpo completo
tem, de apreendê-la, faculdade.

Apenas um corpo completo
e sem dividir-se em análise
será capaz do corpo a corpo
necessário a que, sem desfalque,

queira prender todos os temas
que pode haver no corpo frase:
que ela, ainda sem se decompor,
revela então, em intensidade.

II

De longe como Mondrians
em reproduções de revista
ela só mostra a indiferente
perfeição da geometria.

Porém de perto, o original
do que era antes correção fria,
sem que a câmara da distância
e suas lentes interfiram,

porém de perto, ao olho perto,
sem intermediárias retinas,
de perto, quando o olho é tato,
ao olho imediato em cima,

se descobre que existe nela
certa insuspeitada energia
que aparece nos Mondrians
se vistos na pintura viva.

E que porém um Mondrian
num ponto se diferencia:
em que nela essa vibração,
que era de longe impercebida,

pode abrir mão da cor acesa
sem que um Mondrian não vibra,
e vibrar com a textura em branco
da pele, ou da tela, sadia.

III

Quando vestido unicamente
com a macieza nua dela,
não apenas sente despido:
sim, de uma forma mais completa.

Então, de fato, está despido,
senão dessa roupa que é ela.
Mas essa roupa nunca veste:
despe de uma outra mais interna.

É que o corpo quando se veste
de ela roupa, da seda ela,
nunca sente mais definido
como com as roupas de regra.

Sente ainda mais que despido:
pois a pele dele, secreta,
logo se esgarça, e eis que ele assume
a pele dela, que ela empresta.

Mas também a pele emprestada
dura bem pouco enquanto véstia:
com pouco, ela toda também,
já se esgarça, se desespessa,

até acabar por nada ter
nem de epiderme nem de seda:
e tudo acabe confundido,
nudez comum, sem mais fronteira.

IV

Está, hoje que não está
numa memória mais de fora.
De fora: como se estivesse
num tipo externo de memória.

Numa memória para o corpo
externa ao corpo, como bolsa,
Que como bolsa, a certos gestos,
o corpo que a leva abalroa.

Memória exterior ao corpo
e não da que de dentro aflora;
E que, feita que é para o corpo,
carrega presenças corpóreas.

Pois nessa memória é que ela,
inesperada se incorpora:
na presença, coisa, volume,
imediata ao corpo, sólida,

e que ora é volume maciço,
entre os braços, neles envolta,
e que ora é volume vazio,
que envolve o corpo, ou o acoita:

como o de uma coisa maciça
que ao mesmo tempo fosse oca,
que o corpo teve, onde já esteve,
e onde o ter e o estar igual fora.

O Retirante Explica ao Leitor Quem é e a Que Vai

— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

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Publicado no livro Duas águas: poemas reunidos (1956). Poema integrante da série Morte e Vida Severina.

In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa: volume único. Org. Marly de Oliveira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.171-172. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira

Meu Álcool

Marques Rabelo garantia
que bêbado era quem bebia
por se inventar duplo motivo:
sentir-se invivo ou sobrevivo.

Querer-se lúcido, acordar,
ser todo o agudo que nele há,
ser quando está de todo aceso,
tem o ser na ponta dos dedos.

Ou estar num ser tão extreme
que ser é insuportavelmente,
que ser é estar-se num incêndio
e sentir-se esse incêndio sendo.

Por isso, é que o bêbado bebe:
porque triste quer ser alegre,
e bebe porque chega a demais
a alegria de que ele é capaz.

2

Um pôde achar álcool melhor,
não tóxico, sem qualquer depois,
um álcool que não tem veneno
nem contém amanhãs de inferno.

Que, se é preciso, apaga o incêndio
e se é preciso, vem e acende-o;
um álcool que possui duas pontas,
que age a favor como age contra,

nem precisa que alguém lhe diga
quando dar mais ou menos vida
(como lâmpada do escritor russo,
põe o quarto aceso ou escuro).

Mais: que não se bebe, contempla;
é um álcool para a convivência,
álcool que dá a chama e o sopro
com tê-lo ao alcance do corpo.

3

Esse álcool não é de vender:
ninguém engarrafou um ser.
É álcool sem quandos, sem ondes,
de perto, ou pelo telefone.

Vê-lo e usá-lo foi de imediato:
depois de álcoois mais variados,
da familiar cana de cana
de suas várzeas pernambucanas,

viajou por outros tão diversos
(os de Appolinaire, o dos versos)
que até empregou como bebida
o fluido ambíguo de Sevilha.

E de nenhum deles renega:
nem das úlceras que eles legam
nem da intestina homorragia
em hospitais ao fio da vida.

3

Se a um novo álcool se entregou,
se o vê como álcool superior,
não foi por causa de conselho,
prescrição de médico, ou medo.

É que no novo álccol de agora
pode alcançar mais alta quota
de álcool na vida, e é mais contínua
a vida que acende, e seu clima:

um clima mais claro, e tão limpo
como toalha ou lençol de linho,
e ao mesmo tempo tão intenso
de um ser vivo vivendo pleno.

(E isso, só, com a convivência
de mulher, com a nua presença
de mulher, que como Sevilha
é interna-externa, é noitedia.)
João Cabral de Melo Neto (Recife PE 1920 - Rio de Janeiro RJ 1999) publicou, em 1942, Pedra do Sono, seu primeiro livro de poesia. Em 1945 saiu O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios do rigor, da clareza e da objetividade, características pelas quais sua obra se tornou conhecida. Nesse mesmo ano entrou para a diplomacia, carreira a que se dedicaria nas décadas seguintes; serviu na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1950 publicou O Cão sem Plumas, em cujos versos manifesta preocupações sociais. Nos anos seguintes produziu várias obras poéticas, entre as quais Duas Águas (1956), Quaderna (1960), Morte e Vida Severina (1966) e A Educação pela Pedra (1967), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia de 1967. A peça Morte e Vida Severina foi musicada por Chico Buarque de Holanda, em 1966, e recebeu vários prêmios. É a obra mais conhecida de João Cabral, que escreveu ainda Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Poesia Crítica (1982) e Crime na Calle Relator (1987), entre outros livros de poesia. Sua Obra Completa foi publicada em 1994. Conhecido como “poeta-engenheiro”, João Cabral de Melo Neto costuma ser identificado, por critério cronológico, com a terceira geração do Modernismo; mas sua poesia, que incorpora as raízes populares da literatura de cordel, instaura um novo critério estético e figura como das mais singulares na Literatura Brasileira.
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Muito lindo esse poema maravilhoso dele está na m memória na história.
07/junho/2021
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entendi nada
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Alguém saberia me dar um exemplo de verso de rimas consoantes e outro de rimas assoantes?
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