João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto

João Cabral de Melo Neto foi um poeta e diplomata brasileiro. Sua obra poética, vai de uma tendência surrealista até a poesia popular, porém caracterizada pelo rigor estético.

1920-01-09 Recife, Pernambuco, Brasil
1999-10-09 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Alguns Poemas

Os Três Mal-Amados

O amor comeu meu nome, minha identidade,
meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade,
minha genealogia, meu endereço. O amor
comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos
os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas
camisas. O amor comeu metros e metros de
gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o
número de meus sapatos, o tamanho de meus
chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a
cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas
médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas,
minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus
testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de
poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações
em verso. Comeu no dicionário as palavras que
poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso:
pente, navalha, escovas, tesouras de unhas,
canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de
meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada
no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto
mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu
a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de
propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos
que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde
irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta,
cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas.
O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos,
e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua
chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba
de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam
sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas
de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a
água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os
mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde
ácido das plantas de cana cobrindo os morros
regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo
trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de
cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas
coisas de que eu desesperava por não saber falar
delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas
folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de
meu relógio, os anos que as linhas de minha mão
asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro
grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da
terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e
minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu
silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte”.

Os Três Mal-Amados

JOÃO: Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?

RAIMUNDO: Maria era a praia que eu frequentava certas manhãs. Meus gestos indispensáveis que se cumpriam a um ar tão absolutamente livre que ele mesmo determina seus limites, meus gestos simplificados diante de extensões de que uma luz geral aboliu todos os segredos.

JOAQUIM: O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

JOÃO: Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.

RAIMUNDO: Maria era sempre uma praia, lugar onde me sinto exato e nítido como uma pedra – meu particular, minha fuga, meu excesso imediatamente evaporados. Maria era o mar dessa praia, sem mistério e sem profundeza. Elementar, como as coisas que podem ser mudadas em vapor ou poeira.

JOAQUIM: O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

JOÃO: Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?

RAIMUNDO: Maria era também uma fonte. O líquido que começaria a jorrar num momento que eu previa, num ponto que eu poderia examinar, em circunstâncias que eu poderia controlar. Eu aspirava acompanhar com os olhos o crescimento de um arbusto, o surgimento de um jorro de água.

JOAQUIM: O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

JOÃO: Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?

RAIMUNDO: Maria não era um corpo vago, impreciso. Eu estava ciente de todos os detalhes do seu corpo, que poderia reconstituir à minha vontade. Sua boca, seu riso irregular. Todos esses detalhes não me seria difícil arrumá-los, recompondo-a, como num jogo de armar ou uma prancha anatômica.

JOAQUIM: O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

JOÃO: Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).

RAIMUNDO: Maria era também, em certas tardes, o campo cimentado que eu atravessava para chegar em algum lugar. Sozinho sobre a terra e sob um sol que me poderia evaporar de toda nuvem.

JOAQUIM: Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unha, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

JOÃO: Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?

RAIMUNDO: Maria era também uma árvore. Um desses organismos sólidos e práticos, presos à terra com raízes que a exploram e devassam seus segredos. E ao mesmo tempo lançados para o céu, com quem permutam seus gases, seus pássaros, seus movimentos.

JOAQUIM: O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

JOÃO: O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa…

RAIMUNDO: Maria era também a garrafa de aguardente. Aproximo o ouvido dessa forma correta e explorável e percebo o rumor e os movimentos de sonhos possíveis, ainda em sua matéria líquida, sonhos de que disporei, que submeterei a meu tempo e minha vontade, que alcançarei com a mão.

JOAQUIM: O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

JOÃO: Talvez Teresa… Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?

RAIMUNDO: Maria era também o jornal. O mundo ainda quente, em sua última edição e mais recente.

JOAQUIM: O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

JOÃO: Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua poesia?

RAIMUNDO: Maria era também um livro susto de que estamos certos, susto que praticar, com que fazer os exercícios que nos permitirão entender a voz de uma cadeira, de uma cômoda; susto cuidadosamente oculto, como qualquer animal venenoso entre folhas claras e organizadas dessa floresta numerada que leva dísticos explicativos: poesia, poemas, versos.

JOAQUIM: O amor comeu meu estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava não saber falar delas em verso.

JOÃO: O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?

RAIMUNDO: Maria era também a folha em branco, barreira oposta ao rio impreciso que corre em regiões de alguma parte de nós mesmos. Nessa folha eu construirei um objeto sólido que depois imitarei, o qual depois me definirá. Penso para escolher: um poema, um desenho, um cimento armado – presenças precisas e inalteráveis, opostas a minha fuga.

JOAQUIM: O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão me asseguram. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

JOÃO: Donde me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.

RAIMUNDO: Maria era também o sistema estabelecido de antemão, o fim aonde chegar. Era a lucidez, que, ela só, nos pode dar um modo novo e completo de ver uma flor, de ler um verso.

JOAQUIM: O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto (Recife PE 1920 - Rio de Janeiro RJ 1999) publicou, em 1942, Pedra do Sono, seu primeiro livro de poesia. Em 1945 saiu O Engenheiro, livro em que apresenta os princípios do rigor, da clareza e da objetividade, características pelas quais sua obra se tornou conhecida. Nesse mesmo ano entrou para a diplomacia, carreira a que se dedicaria nas décadas seguintes; serviu na Espanha, na Inglaterra, na França e no Senegal. Em 1950 publicou O Cão sem Plumas, em cujos versos manifesta preocupações sociais. Nos anos seguintes produziu várias obras poéticas, entre as quais Duas Águas (1956), Quaderna (1960), Morte e Vida Severina (1966) e A Educação pela Pedra (1967), com o qual ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia de 1967. A peça Morte e Vida Severina foi musicada por Chico Buarque de Holanda, em 1966, e recebeu vários prêmios. É a obra mais conhecida de João Cabral, que escreveu ainda Museu de Tudo (1975), A Escola das Facas (1980), Poesia Crítica (1982) e Crime na Calle Relator (1987), entre outros livros de poesia. Sua Obra Completa foi publicada em 1994. Conhecido como “poeta-engenheiro”, João Cabral de Melo Neto costuma ser identificado, por critério cronológico, com a terceira geração do Modernismo; mas sua poesia, que incorpora as raízes populares da literatura de cordel, instaura um novo critério estético e figura como das mais singulares na Literatura Brasileira.
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