Reinaldo Ferreira
Reinaldo Edgar de Azevedo e Silva Ferreira foi um poeta português que realizou toda a sua obra em Moçambique.
1922-03-20 Barcelona
1959-06-30 Maputo
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191
A estátua jacente
Mandei, mundano, talhar
Esta galante postura.
Ai de mim!, que a desventura
Dura o que a pedra durar!
Latinas frases austeras
Dizem de mim ilegíveis,
As mil virtudes possíveis
À pressão das sete esferas.
O nome, farto e faustoso
Com que de nada me enchi
Horizontal, o esqueci
Da altura do meu repouso.
Mas sempre sofro, emanando
Das cinzas por mim guardadas,
Memória de horas danadas
Que vão meu sono acordando.
Bispo fui; amando a guerra,
Cego ao aceno dos céus,
Troquei a graça de Deus
Pelas miragens da terra
Fui cobiçoso, mesquinho,
Falso, cruel, intrigante,
E numa orgia infamante
Pequei a carne e o vinho.
Morto me acharam um dia
No leito; tão decomposto
Que pelos restos do rosto
Ninguém já me conhecia.
Em vão, com óleos, essências
De aroma arábico e forte,
Se disputaram à morte
Minhas letais pestilências.
Húmido, em nardo, eu jazia;
Mas o fedor que exalava,
Mais que da carne, alastrava
Da alma que apodrecia.
Mãos, num vagar rancoroso,
Vingadas, porque adularam,
Em brocado entalharam
Meu corpo inchado e escabroso.
Por fim, fantoche mitrado,
Entre cem círios a arder
- Pudesse um deles também ser
E consumir-me queimado! -
Entrei na nave deserta
Que do pórtico parecia
Que a todos nos engolia,
Fauce esfaimada e aberta.
Oh! Com que náusea os ouvi
Salmodiar-me; e exausto
De tão falsíssimo fausto,
Com terror me apercebi
De que o cansaço devia
Ter-se extinguido também
Comigo, não ir além
Da vida que em mim havia.
Mas não! Meus cinco sentidos
Desenfreados agora
Os tinha mais do que outrora,
Buscando os vícios preferidos!
Incapaz de movimento,
Eu, cego, impotente e mudo,
Dentro de mim, via tudo
Num pavoroso tormento!
Só a solidão me deixaram
Na cava nave nocturna
E a presença taciturna
Dos que a meu soldo mataram,
Dos que a meu lado morreram
Sem confissão, emboscados,
Dos que ao meu oiro amarrados
Porque os perdi se perderam!
O tempo, enorme, passou.
Mais que um vitral se partiu,
Mais de que um arco ruiu
E eu vivo e morto ainda estou.
Quando o tempo ao fim desbaste
Minhas puídas feições,
Talvez as minhas acções
Também o tempo as desgaste.
A sombra silenciosa
Da cruz, que alonga ao sol posto
Sua brandura ao meu rosto,
Talvez parando piedosa
Sobre os meus olhos, talvez
Dorida do meu quebranto,
Amoleça em meigo pranto
Tanta maciça altivez.
Talvez os vermes, por dó,
Os alicerces minando,
Altos tectos derrubando,
Me restituam ao pó.
Talvez também - maldição! -
Em cada grão inda viva
A minha insónia, cativa
De um remorso sem perdão!
Não creias, pois, viajante
No meu sossego aparente;
Sê calmo, casto e constante,
Sê sóbrio, humano e paciente;
Sê tudo quanto eu não sendo,
Porque o não fui, Deus legou,
À pedra inerme jazendo
A sensação de quem sou.
Esta galante postura.
Ai de mim!, que a desventura
Dura o que a pedra durar!
Latinas frases austeras
Dizem de mim ilegíveis,
As mil virtudes possíveis
À pressão das sete esferas.
O nome, farto e faustoso
Com que de nada me enchi
Horizontal, o esqueci
Da altura do meu repouso.
Mas sempre sofro, emanando
Das cinzas por mim guardadas,
Memória de horas danadas
Que vão meu sono acordando.
Bispo fui; amando a guerra,
Cego ao aceno dos céus,
Troquei a graça de Deus
Pelas miragens da terra
Fui cobiçoso, mesquinho,
Falso, cruel, intrigante,
E numa orgia infamante
Pequei a carne e o vinho.
Morto me acharam um dia
No leito; tão decomposto
Que pelos restos do rosto
Ninguém já me conhecia.
Em vão, com óleos, essências
De aroma arábico e forte,
Se disputaram à morte
Minhas letais pestilências.
Húmido, em nardo, eu jazia;
Mas o fedor que exalava,
Mais que da carne, alastrava
Da alma que apodrecia.
Mãos, num vagar rancoroso,
Vingadas, porque adularam,
Em brocado entalharam
Meu corpo inchado e escabroso.
Por fim, fantoche mitrado,
Entre cem círios a arder
- Pudesse um deles também ser
E consumir-me queimado! -
Entrei na nave deserta
Que do pórtico parecia
Que a todos nos engolia,
Fauce esfaimada e aberta.
Oh! Com que náusea os ouvi
Salmodiar-me; e exausto
De tão falsíssimo fausto,
Com terror me apercebi
De que o cansaço devia
Ter-se extinguido também
Comigo, não ir além
Da vida que em mim havia.
Mas não! Meus cinco sentidos
Desenfreados agora
Os tinha mais do que outrora,
Buscando os vícios preferidos!
Incapaz de movimento,
Eu, cego, impotente e mudo,
Dentro de mim, via tudo
Num pavoroso tormento!
Só a solidão me deixaram
Na cava nave nocturna
E a presença taciturna
Dos que a meu soldo mataram,
Dos que a meu lado morreram
Sem confissão, emboscados,
Dos que ao meu oiro amarrados
Porque os perdi se perderam!
O tempo, enorme, passou.
Mais que um vitral se partiu,
Mais de que um arco ruiu
E eu vivo e morto ainda estou.
Quando o tempo ao fim desbaste
Minhas puídas feições,
Talvez as minhas acções
Também o tempo as desgaste.
A sombra silenciosa
Da cruz, que alonga ao sol posto
Sua brandura ao meu rosto,
Talvez parando piedosa
Sobre os meus olhos, talvez
Dorida do meu quebranto,
Amoleça em meigo pranto
Tanta maciça altivez.
Talvez os vermes, por dó,
Os alicerces minando,
Altos tectos derrubando,
Me restituam ao pó.
Talvez também - maldição! -
Em cada grão inda viva
A minha insónia, cativa
De um remorso sem perdão!
Não creias, pois, viajante
No meu sossego aparente;
Sê calmo, casto e constante,
Sê sóbrio, humano e paciente;
Sê tudo quanto eu não sendo,
Porque o não fui, Deus legou,
À pedra inerme jazendo
A sensação de quem sou.
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