Filipa Leal

Poeta e jornalista cultural. Estudou jornalismo na University of Westminster e Literatura portuguesa e brasileira na Universidade do Porto.

1979-03-14 Porto
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Do medo em diante

Trazia a novidade de não ter medo
de descer a rua e atravessar a sombra
dos prédios atirada como arma
de granito, como festejo de civilização.

Perdera subitamente o medo do seu século,
do século que se vivia naquela rua
onde alguns se morriam à injecção,
do século das luzes dos seus vizinhos
a apagarem se ao mesmo tempo
sem nunca terem trocado nada que não
essa distância de garagem, essa coincidência
dos horários civilizacionais.

Trazia a consciência de ser europeia
(África doera-lhe nos olhos como holofotes)
e de não querer escrever sobre esse assunto.
Mas não ter medo de descer aquela rua,
não ter medo de apagar sozinha a luz àquela hora,
não ter medo de nunca estacionar o carro na garagem
e de estar por isso sempre mais só do que os vizinhos,

pensava,

era suficientemente novo
para o poema.

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