Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade foi um poeta, contista e cronista brasileiro, considerado por muitos o mais influente poeta brasileiro do século XX.
1902-10-31 Itabira do Mato Dentro, Minas Gerais, Brasil
1987-08-17 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
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Canção do Fico
Minha cidade do Rio,
meu castelo de água e sol,
a dois meses de mudança
dos dirigentes de prol;
minha terra de nascença
terceira, pois foi aqui,
em êxtase, alumbramento,
que o mar e seus mundos vi;
minha fluida sesmaria
de léguas de cisma errante,
meu anel verde, meu cravo
solferino, mel do instante;
saci oculto nos morros,
mapa aberto à luz das praias,
códice de piada e gíria,
coxas libertas de saias;
favelas portinarescas
onde o samba se arredonda,
e claustro beneditino,
sal de batismo na onda;
cinemeiro Rio, atlético,
flamengo ou vasco, porosa
urna plena do noivado
de uísque com manga-rosa;
meu terreiro de São Jorge,
meu parlamento das ruas,
andaraís, méiers, gáveas,
sob a unção de oitenta luas;
Cristo em névoa corcovádica,
bondinho do Pão de Açúcar
e pescarias na barra
— louca rima — da Tíjúcar (!);
Rio de ontem: Rui Barbosa,
na Rua de São Clemente,
mantendo acesa a candeia,
ciceronianamente;
Dr. Campos Porto, no horto
botânico, em meio a palmas
imperiais, que ao crepúsculo
são aves minerais, calmas;
minha igrejinha do Outeiro,
que Rodrigo zela tanto,
e entre cujos azulejos
esvoaça o Espírito Santo;
meus livros velhos nos “sebos”,
meu chafariz do Lagarto,
e esse tostão de paisagem
da janela de meu quarto;
e a tarde, imensa, pairando:
lá longe o Dedo de Deus;
calor, e sorriso, e brisa
que alisa os cuidados meus;
cidade que tantos bens
deste a todos, e tão pouco,
em gratidão e carinho,
agora te dão em troco;
malvestida, mal comida,
descalça, “dependurada”,
e conservando no rosto,
como cristais de orvalhada,
não sei que beleza infante,
gosto de viver, e graça:
pouco importa que te levem
o que, no fundo, é fumaça.
Rio antigo, Rio eterno,
Rio-oceano, Rio amigo,
o Governo vai-se? Vá-se!
Tu ficarás, e eu contigo.
21/02/1960
meu castelo de água e sol,
a dois meses de mudança
dos dirigentes de prol;
minha terra de nascença
terceira, pois foi aqui,
em êxtase, alumbramento,
que o mar e seus mundos vi;
minha fluida sesmaria
de léguas de cisma errante,
meu anel verde, meu cravo
solferino, mel do instante;
saci oculto nos morros,
mapa aberto à luz das praias,
códice de piada e gíria,
coxas libertas de saias;
favelas portinarescas
onde o samba se arredonda,
e claustro beneditino,
sal de batismo na onda;
cinemeiro Rio, atlético,
flamengo ou vasco, porosa
urna plena do noivado
de uísque com manga-rosa;
meu terreiro de São Jorge,
meu parlamento das ruas,
andaraís, méiers, gáveas,
sob a unção de oitenta luas;
Cristo em névoa corcovádica,
bondinho do Pão de Açúcar
e pescarias na barra
— louca rima — da Tíjúcar (!);
Rio de ontem: Rui Barbosa,
na Rua de São Clemente,
mantendo acesa a candeia,
ciceronianamente;
Dr. Campos Porto, no horto
botânico, em meio a palmas
imperiais, que ao crepúsculo
são aves minerais, calmas;
minha igrejinha do Outeiro,
que Rodrigo zela tanto,
e entre cujos azulejos
esvoaça o Espírito Santo;
meus livros velhos nos “sebos”,
meu chafariz do Lagarto,
e esse tostão de paisagem
da janela de meu quarto;
e a tarde, imensa, pairando:
lá longe o Dedo de Deus;
calor, e sorriso, e brisa
que alisa os cuidados meus;
cidade que tantos bens
deste a todos, e tão pouco,
em gratidão e carinho,
agora te dão em troco;
malvestida, mal comida,
descalça, “dependurada”,
e conservando no rosto,
como cristais de orvalhada,
não sei que beleza infante,
gosto de viver, e graça:
pouco importa que te levem
o que, no fundo, é fumaça.
Rio antigo, Rio eterno,
Rio-oceano, Rio amigo,
o Governo vai-se? Vá-se!
Tu ficarás, e eu contigo.
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