Nuno Júdice
Nuno Júdice é um ensaísta, poeta, ficcionista e professor universitário português. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa e obteve o grau de Doutor pela Universidade Nova.
1949-04-29 Mexilhoeira Grande
2024-03-17
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Luta de classes
Nem todos os que construíram as catedrais viram
o mesmo. Uns, ergueram torres e pináculos, à luz do sol,
e chegaram ao céu; outros, metidos nas criptas,
pintaram infernos à luz de velas, deixando no chão
o lugar para os mais anónimos dos mortos. Os
que chegaram ao cimo, receberam o olhar divino e
viram o júbilo das madrugadas primaveris; os
que ficaram no fundo, arrancando à humidade das paredes
o gesto alucinado dos demónios, trocaram
obscenidades e doenças. No entanto, a catedral
é única; e quem a visita, apreciando a totalidade que, dizem,
nasceu de uma visão do absoluto, não pensa
em pormenores. Que importa os que trabalharam
na sombra, perdendo a luz dos olhos com o minucioso
desenho arrancando à treva, se o que hoje se vê
é esse contorno em que a pedra trabalha o céu? Assim,
conclui-se, é da desigualdade que nasce
a harmonia; e é a desordem humana que faz brotar,
do nada, tudo o que admiramos.
Nuno Júdice | "Cartografia de Emoções" | Publicações Dom Quixote, 2002
o mesmo. Uns, ergueram torres e pináculos, à luz do sol,
e chegaram ao céu; outros, metidos nas criptas,
pintaram infernos à luz de velas, deixando no chão
o lugar para os mais anónimos dos mortos. Os
que chegaram ao cimo, receberam o olhar divino e
viram o júbilo das madrugadas primaveris; os
que ficaram no fundo, arrancando à humidade das paredes
o gesto alucinado dos demónios, trocaram
obscenidades e doenças. No entanto, a catedral
é única; e quem a visita, apreciando a totalidade que, dizem,
nasceu de uma visão do absoluto, não pensa
em pormenores. Que importa os que trabalharam
na sombra, perdendo a luz dos olhos com o minucioso
desenho arrancando à treva, se o que hoje se vê
é esse contorno em que a pedra trabalha o céu? Assim,
conclui-se, é da desigualdade que nasce
a harmonia; e é a desordem humana que faz brotar,
do nada, tudo o que admiramos.
Nuno Júdice | "Cartografia de Emoções" | Publicações Dom Quixote, 2002
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