Erotismo e Poesia
Neste breve discurso acerca de erotismo e poesia, desferiremos um vol doiseau sobre alguns dos mais notáveis acidentes eróticos da poesia brasileira, do Romantismo aos nossos dias. O assunto é saboroso, nossa poesia muito rica, talvez devesse eu ceder de pronto a voz aos poetas convocados, que têm muito a dizer; e muito mais poemas e poetas haveria, se espaço houvera. Mas como, afinal de contas, está comigo a palavra, não posso deixar de dizer alguma coisa própria a respeito, e é o que passo a fazer, contando com a paciência e boa vontade dos amigos.
De Eros, representaçao do Amor entre os gregos, desde o século VI a.C. cultuado principalmente como o deus da Paixão, vem erotismo. Significa paixão amorosa — o amor, não tanto no seu lado "cavalheiresco", platônico, dominante na poesia trovadoresca, por exemplo, mas antes no seu aspecto físico, sexual. A maior ou menor franqueza com que se pode, sem escândalo, falar do amor erótico, em literatura, varia de civilização para civilização; assim, obras que têm, em determinado país e tempo, serena posição nas letras, alhures ou em outra época poderão ser consideradas pornográficas. É como sói ser encarado no Ocidente o Kama-Sutra, antigo manual hindu de técnicas sexuais.
Mesmo em relação a obras da nossa cultura e do nosso tempo, é muita vez difícil a distinção entre arte e pornografia; e é verdade que a mesma obra pode agasalhar, lado a lado, ou misturados, imbricados, traços artísticos e traços pornográficos. Há de haver, sem embargo, meios ao alcance do leitor — e falo em leitor porque nos estamos cingindo à literatura, mais especificamente à poesia — para essa distinção. Tentando estabelecê-los, recorro a um breve discurso paralelo acerca do que chamo "a psicologia do palavrão".
Que vem a ser isto, um palavrão? Uma "palavra obscena ou grosseira", diz Mestre Aurélio, no seu dicionário. Mas, se temos duas palavras significando a mesma coisa, como, por que se há de associar a uma delas conotação de obscenidade, ou grosseria, e não à outra?
O que determina essa carga negativa, ou positiva, ou neutra, das palavras é a intenção. Deste modo, tem a língua, para significar os órgãos sexuais, palavras de uso restrito a meios técnicos ou científicos, e que podem ser fora daí empregadas sem susto, por serem meramente denotativas, eticamente neutras; palavras de uso familiar, carregadas de variável gama afetiva, que podemos dizer portadoras de conotação positiva; e palavras de baixo calão, que, além do significado, basicamente igual ao de suas irmãs retromencionadas, imantam-se de uma intenção negativa — de depreciação, achincalhe, deboche. Normalmente, estas últimas têm curso no escuso dos becos, em esconsos quartos ou frias salas, em meios onde os homens, vítimas da própria miséria, passam a ser uns para os outros não mais que objetos de egoístico prazer, ou sujo lucro. Por isto, não é necessariamente fruto de condenável preconceito a recusa de trânsito em níveis mais altos a certas palavras forjadas ou em curso naqueles meios; pois o que se recusa, ou deve recusar, nelas é a intenção que visa a diminuir o destinatário e que avilta o emitente. (Conseqüentemente, as palavras podem mudar de categoria, subir ou descer, degradar-se ou reabilitar-se, conforme o uso social que se lhes dê; e pode a mesma palavra pertencer a opostas categorias, em meios diversos.)
De modo semelhante, a qualificação de erótica ou pornográfica a obra literária depende do ponto de vista em que se coloque o autor (ou o leitor, o que relativiza ainda mais a questão). Transcrevo o que dizem a respeito Otto Maria Carpeaux e Sebastião Uchoa Leite, no verbete "erotismo" da Enciclopédia Mirador Internacional:
"A pornografia não provoca, em geral, questões de crítica literária; há, até, quem duvide se esses produtos pertencem à literatura em qualquer sentido da palavra. Essa dúvida atinge sobretudo as obras pornográficas que foram escritas com o único fim de estimular sensações sexuais. Mas em muitos casos a confecção de obras pornográficas serve para satisfazer os estímulos irrealizáveis dos próprios autores; trata-se, nesses casos, de fantasias de regressão infantil, de sonhos de poder sobre órgãos genitais alheios, que são o único tópico da pornografia ("pornotopia"). A exclusão de todos os outros motivos e a redução dos personagens a seus órgãos genitais são traços característicos da pornografia e indícios de que não se trata acaso de literatura propriamente dita."
Pornográfica é a obra em que se objetualiza o ser humano como pasto de paixões, reduzido o amor à bestialidade, isto é, à exacerbação e cega satisfação do instinto. E diria que a pornografia está para o erotismo assim como a prostituição está para o amor.
Não me lembra que escritor se perguntava, com real ou ficta perplexidade, por que não se dignavam os poetas de cantar os prazeres do paladar, como cantam os do amor. Sim, por que não merecerem algumas notas líricas as delícias do tutu com torresmo, o êxtase da feijoada completa, a ingenuidade da salada vegetal, os mistérios espirituais dos álcoois? (Estes até que não podem se queixar ... )
Poesia é transcendência. Por isto não canta o poeta o bom prato, a não ser no poema satírico. Por isto, ao cantar o amor, se não lhe despreza as materialidades, procura colher-lhe a volátil essência; nem é verdadeiramente poesia, senão torpe simulacro, essa, pseudo-erótica, incapaz de ultrapassar o descritivismo no âmbito da física sexual.
Uma e outra coisa existem e são necessárias. Só que não são, em si mesmas, objeto de poesia, como não o é o econômico, o técnico em geral. E, forçadas a um papel mais alto que o que lhes compete, tornam-se grotescas, ou obscenas.
Mas, esperem aí! — somos corpo e espírito, espírito e corpo. Quando sugiro espiritualização, não me entendam mal, não estou recusando o corpóreo. Nem me esqueço de que a poesia erótica ocidental tem raiz em seu livro sagrado — na Bíblia, no Velho Testamento, no Cântico dos Cânticos de Salomão. E como, nos seus cantares, se refere o rei poeta aos dotes da Sulamita? Em termos como estes, cuja sensualidade não elide a pureza:
"Quão belos são os teus pés
nas sandálias que trazes, ó filha de príncipe!
As colunas das tuas pernas são como anéis trabalhados por
mãos de artista.
o teu umbigo é uma taça arredondada,
que nunca está desprovida de vinho.
O teu ventre é como um monte de trigo
cercado de lírios.
Os teus dois seios são como dois filhinhos
gêmeos duma gazela.
O teu pescoço é como uma torre de marfim.
Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon,
que estão situadas junto da porta de Bat-Rabim.
O teu nariz é como a torre do Líbano,
que olha para Damasco.
A tua cabeça levanta-se como o monte Carmelo;
os cabelos da tua cabeça são como a púrpura
um rei ficou preso às suas madeixas.
Quão formosa e encantadora és,
meu amor, minhas delícias!
A tua figura é semelhante a uma palmeira.
Eu disse. Subirei à palmeira,
e colherei os seus frutos.
Os teus seios serão, para mim, como cachos de uvas,
e o perfume da tua boca como o das maçãs."
Feito o intróito, cuja extensão espero me seja perdoada, passemos aos verdadeiros falantes desta jornada.
Álvares de Azevedo, um dos "gênios adolescentes" do nosso Romantismo, em cuja época se praticou pela primeira vez uma poesia caracterizadamente brasileira, morreu aos vinte anos, "sem na vida ter sentido nunca" — conforme se queixava no poema "Idéias Íntimas" — "na suave atração de um róseo corpo" os "olhos turvos se fechar de gozo". Não obstante, ou talvez por isso mesmo, sua lírica amorosa revela, no dizer de Antônio Soares Amora, erotismo tão explícito corno nunca antes, entre nós. É, pois, merecedor das honras da abertura. Leiam-se as estrofes iniciais de "Seio de Virgem":
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De Eros, representaçao do Amor entre os gregos, desde o século VI a.C. cultuado principalmente como o deus da Paixão, vem erotismo. Significa paixão amorosa — o amor, não tanto no seu lado "cavalheiresco", platônico, dominante na poesia trovadoresca, por exemplo, mas antes no seu aspecto físico, sexual. A maior ou menor franqueza com que se pode, sem escândalo, falar do amor erótico, em literatura, varia de civilização para civilização; assim, obras que têm, em determinado país e tempo, serena posição nas letras, alhures ou em outra época poderão ser consideradas pornográficas. É como sói ser encarado no Ocidente o Kama-Sutra, antigo manual hindu de técnicas sexuais.
Mesmo em relação a obras da nossa cultura e do nosso tempo, é muita vez difícil a distinção entre arte e pornografia; e é verdade que a mesma obra pode agasalhar, lado a lado, ou misturados, imbricados, traços artísticos e traços pornográficos. Há de haver, sem embargo, meios ao alcance do leitor — e falo em leitor porque nos estamos cingindo à literatura, mais especificamente à poesia — para essa distinção. Tentando estabelecê-los, recorro a um breve discurso paralelo acerca do que chamo "a psicologia do palavrão".
Que vem a ser isto, um palavrão? Uma "palavra obscena ou grosseira", diz Mestre Aurélio, no seu dicionário. Mas, se temos duas palavras significando a mesma coisa, como, por que se há de associar a uma delas conotação de obscenidade, ou grosseria, e não à outra?
O que determina essa carga negativa, ou positiva, ou neutra, das palavras é a intenção. Deste modo, tem a língua, para significar os órgãos sexuais, palavras de uso restrito a meios técnicos ou científicos, e que podem ser fora daí empregadas sem susto, por serem meramente denotativas, eticamente neutras; palavras de uso familiar, carregadas de variável gama afetiva, que podemos dizer portadoras de conotação positiva; e palavras de baixo calão, que, além do significado, basicamente igual ao de suas irmãs retromencionadas, imantam-se de uma intenção negativa — de depreciação, achincalhe, deboche. Normalmente, estas últimas têm curso no escuso dos becos, em esconsos quartos ou frias salas, em meios onde os homens, vítimas da própria miséria, passam a ser uns para os outros não mais que objetos de egoístico prazer, ou sujo lucro. Por isto, não é necessariamente fruto de condenável preconceito a recusa de trânsito em níveis mais altos a certas palavras forjadas ou em curso naqueles meios; pois o que se recusa, ou deve recusar, nelas é a intenção que visa a diminuir o destinatário e que avilta o emitente. (Conseqüentemente, as palavras podem mudar de categoria, subir ou descer, degradar-se ou reabilitar-se, conforme o uso social que se lhes dê; e pode a mesma palavra pertencer a opostas categorias, em meios diversos.)
De modo semelhante, a qualificação de erótica ou pornográfica a obra literária depende do ponto de vista em que se coloque o autor (ou o leitor, o que relativiza ainda mais a questão). Transcrevo o que dizem a respeito Otto Maria Carpeaux e Sebastião Uchoa Leite, no verbete "erotismo" da Enciclopédia Mirador Internacional:
"A pornografia não provoca, em geral, questões de crítica literária; há, até, quem duvide se esses produtos pertencem à literatura em qualquer sentido da palavra. Essa dúvida atinge sobretudo as obras pornográficas que foram escritas com o único fim de estimular sensações sexuais. Mas em muitos casos a confecção de obras pornográficas serve para satisfazer os estímulos irrealizáveis dos próprios autores; trata-se, nesses casos, de fantasias de regressão infantil, de sonhos de poder sobre órgãos genitais alheios, que são o único tópico da pornografia ("pornotopia"). A exclusão de todos os outros motivos e a redução dos personagens a seus órgãos genitais são traços característicos da pornografia e indícios de que não se trata acaso de literatura propriamente dita."
Pornográfica é a obra em que se objetualiza o ser humano como pasto de paixões, reduzido o amor à bestialidade, isto é, à exacerbação e cega satisfação do instinto. E diria que a pornografia está para o erotismo assim como a prostituição está para o amor.
Não me lembra que escritor se perguntava, com real ou ficta perplexidade, por que não se dignavam os poetas de cantar os prazeres do paladar, como cantam os do amor. Sim, por que não merecerem algumas notas líricas as delícias do tutu com torresmo, o êxtase da feijoada completa, a ingenuidade da salada vegetal, os mistérios espirituais dos álcoois? (Estes até que não podem se queixar ... )
Poesia é transcendência. Por isto não canta o poeta o bom prato, a não ser no poema satírico. Por isto, ao cantar o amor, se não lhe despreza as materialidades, procura colher-lhe a volátil essência; nem é verdadeiramente poesia, senão torpe simulacro, essa, pseudo-erótica, incapaz de ultrapassar o descritivismo no âmbito da física sexual.
Uma e outra coisa existem e são necessárias. Só que não são, em si mesmas, objeto de poesia, como não o é o econômico, o técnico em geral. E, forçadas a um papel mais alto que o que lhes compete, tornam-se grotescas, ou obscenas.
Mas, esperem aí! — somos corpo e espírito, espírito e corpo. Quando sugiro espiritualização, não me entendam mal, não estou recusando o corpóreo. Nem me esqueço de que a poesia erótica ocidental tem raiz em seu livro sagrado — na Bíblia, no Velho Testamento, no Cântico dos Cânticos de Salomão. E como, nos seus cantares, se refere o rei poeta aos dotes da Sulamita? Em termos como estes, cuja sensualidade não elide a pureza:
"Quão belos são os teus pés
nas sandálias que trazes, ó filha de príncipe!
As colunas das tuas pernas são como anéis trabalhados por
mãos de artista.
o teu umbigo é uma taça arredondada,
que nunca está desprovida de vinho.
O teu ventre é como um monte de trigo
cercado de lírios.
Os teus dois seios são como dois filhinhos
gêmeos duma gazela.
O teu pescoço é como uma torre de marfim.
Os teus olhos são como as piscinas de Hesebon,
que estão situadas junto da porta de Bat-Rabim.
O teu nariz é como a torre do Líbano,
que olha para Damasco.
A tua cabeça levanta-se como o monte Carmelo;
os cabelos da tua cabeça são como a púrpura
um rei ficou preso às suas madeixas.
Quão formosa e encantadora és,
meu amor, minhas delícias!
A tua figura é semelhante a uma palmeira.
Eu disse. Subirei à palmeira,
e colherei os seus frutos.
Os teus seios serão, para mim, como cachos de uvas,
e o perfume da tua boca como o das maçãs."
Feito o intróito, cuja extensão espero me seja perdoada, passemos aos verdadeiros falantes desta jornada.
Álvares de Azevedo, um dos "gênios adolescentes" do nosso Romantismo, em cuja época se praticou pela primeira vez uma poesia caracterizadamente brasileira, morreu aos vinte anos, "sem na vida ter sentido nunca" — conforme se queixava no poema "Idéias Íntimas" — "na suave atração de um róseo corpo" os "olhos turvos se fechar de gozo". Não obstante, ou talvez por isso mesmo, sua lírica amorosa revela, no dizer de Antônio Soares Amora, erotismo tão explícito corno nunca antes, entre nós. É, pois, merecedor das honras da abertura. Leiam-se as estrofes iniciais de "Seio de Virgem":
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